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Médico em campo

Brasileiro tratou de crianças desnutridas da Somália, viu casos de eutanásia e dividiu acampamento com outros 200

PATRÍCIA BRITTO
DE SÃO PAULO

RESUMO - Quando terminou sua residência médica no Brasil, o paulistano Rui Gutierrez, 29, ingressou na ONG Médicos Sem Fronteiras. Foi enviado a uma missão humanitária no Quênia, onde tratou refugiados da Somália. O país africano vive crise de fome e enfrenta guerra civil marcada por episódios de extrema violência praticada por milícias como o Al Shabab. Gutierrez voltou ao Brasil em outubro passado, quando a ONG retirou seu pessoal do campo após uma onda de sequestros.

Escolhi o trabalho humanitário porque tinha vontade de melhorar a saúde de populações excluídas.
Trabalhei em um campo de refugiados em Dadaab, no Quênia, por sete semanas. É uma cidade próxima à fronteira com a Somália, onde há três campos de refugiados.
Fiquei impressionado com a quantidade de gente. Os três campos abrigam mais de 350 mil pessoas. É a terceira maior cidade do Quênia e o maior campo de refugiados do mundo!
O clima é muito quente e muito seco. Parece o semiárido do Nordeste brasileiro: plantas secas, espinhosas, muito sol e muita areia.
O acampamento em que morei foi construído para abrigar 90 pessoas, mas quando cheguei havia quase 200 numa área do tamanho de três campos de futebol.
A maioria dorme em tendas e não há banheiros, só latrinas: um buraco no chão num ângulo de 45 graus.
Era comum faltar água. Quando acontecia, enviavam caminhões-pipa. Quando faltava energia, usávamos nosso gerador. As condições de higiene não eram ideais.
Desde 1991, a Somália vive uma situação política complicada. É governada por diferentes clãs, o que torna muito difícil qualquer organização ajudar a população. A violência, a falta de escolas, hospitais ou qualquer tipo de segurança tornaram a vida dos somalis muito difícil, e há êxodo para o Quênia.

CHEIRO FORTE
No último ano, por causa da seca, o número de refugiados aumentou. Muitos chegam de ônibus particulares, outros vêm a pé. Houve dias em que mais de mil chegaram a Dadaab.
Gente que deixou tudo pra trás e enfrentou violência, fome e o clima hostil na viagem. Eu me surpreendi com a alegria das pessoas. Imaginava que quem passou por aqueles maus bocados não fosse capaz de rir.
Meu tradutor, Hassan, tem uma história pessoal impressionante. Chegou a Dadaab ainda no colo da mãe. Nunca saiu do campo. Conhece o mundo por meio da TV. Nunca viu o mar nem um rio. Os prédios que conhece não têm mais que dois andares.
Foi ele que me ensinou muita coisa a respeito dos somalis. Um dia, flagrei uma resina de cheiro forte entre os pertences de uma cuidadora. Ela ficou encabulada, não quis dizer o que era.
Hassan explicou que era mirra e que usam para diferentes males, por exemplo, quando um homem não é casado mas tem muita vontade de fornicar (o termo que Hassan usou).
Basta esfregar um pouco sobre a comida e a vontade vai embora. Mas é preciso ter cuidado, porque pode ter efeito permanente.
Nas primeiras três semanas, fui responsável por casos complicados de sarampo, catapora e tuberculose. Depois, passei para as enfermarias das crianças desnutridas.
O tratamento de desnutrição é difícil para os pais compreenderem.
A criança perde um pouco de peso antes de engordar. Muitas mães ficavam irritadas nesta fase.

CURANDEIROS
Os recém-chegados não estão acostumados com a medicina que praticamos. Detestavam a sonda nasogástrica: tinham a impressão de que ela "entra no cérebro".
Há curandeiros tradicionais em toda a Somália e também no campo de refugiados. É comum encontrarmos pacientes com cicatrizes de queimaduras na pele, resultado desses tratamentos.
Algo que me chocou foi a eutanásia. Se alguém de quem eles gostam tem poucas chances de se recuperar, eles a praticam. Vi acontecer duas vezes. Não posso julgar, não conheço essas pessoas nem a vida que levam.
Aprendi muitas lições. Talvez a principal seja seguir o exemplo daquelas pessoas que, mesmo em condições tão duras, celebram alegrias, choram tristezas, são honestas e trabalhadoras.

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