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Entre uma bomba e outra

Em depoimento à Folha, francês que vive em Damasco conta como é a rotina na capital síria, arrasada por 2 anos de guerra civil

JEAN-PIERRE DUTHION ESPECIAL PARA A FOLHA

Damasco é barulho: o barulho dos disparos de artilharia que ribombam em toda a cidade, o barulho dos congestionamentos causados pelos postos de controle, o barulho das ambulâncias.

Damasco também são pessoas -pessoas que tentam desesperadamente preservar uma aparência de normalidade em uma cidade que vive, dia após dia, na loucura e na escuridão.

Damasco é uma cidade em que falta tudo -um botijão de gás, se você conseguir encontrar quem o venda, custa agora mais de US$ 30, ante apenas US$ 7 no passado recente. Para comprar gasolina, é preciso esperar pelo menos cinco horas no posto para encher o tanque.

Quanto à eletricidade, os blecautes são constantes, e em alguns casos duram dezenas de horas; para o trabalho, a maior parte das fábricas da cidade foi destruída, e praticamente todos os escritórios estão fechados.

E o mais grave de tudo é que Damasco é uma cidade à qual falta esperança.

Em uma terça-feira, voltei para casa para almoçar entre duas reuniões de trabalho e de repente ouvi a campainha; levantei-me para abrir a porta e encontrei, diante dela, meu irmão, com o rosto empoeirado. Antes que eu tivesse tempo de convidá-lo a entrar, ele disse:

"Estou vivo".

Indo de carro com a namorada para a casa dela, ele estava passando diante do palácio presidencial quando um disparo de artilharia do Exército Livre da Síria [rebeldes que lutam contra o regime de Bashar Assad] explodiu a poucos metros de distância, gerando uma nuvem de poeira e sangue que entrou pela janela aberta do veículo.

Em poucos minutos, descobri que um ataque havia acontecido a poucos metros de minha casa, que meu irmão estava lá quando isso aconteceu, que ele havia visto pessoas morrerem e que havia sobrevivido.

Em qualquer outro lugar do mundo, ele teria sido encaminhado a um psicólogo, e a família, em choque, passaria semanas sem sair de casa. Mas estamos em Damasco e, por isso, depois de abraçá-lo e de tomar um cálice de vinho com ele e minha mãe, todos retomamos nossas vidas como se nada tivesse acontecido.

INSTANTES DE PAUSA

O barulho dos combates nos acompanha o tempo todo, ao longo do dia, mais ou menos intenso e mais ou menos próximo, de acordo com o horário.

Às vezes, se você está no terraço de um café fumando um narguilé, os disparos e as explosões cessam, e por um instante surge a impressão de que a capital da Síria voltou a ser a cidade que um dia conhecemos.

Uma cidade repleta de vida, de alegria, uma cidade que jamais dorme de verdade, uma cidade na qual as pessoas às vezes dormem até tarde em um dia de trabalho, na qual as famílias chegam em casa às 5h depois de passarem a noite conversando, rindo, chorando.

Quando irrompe o silêncio é que pensamos na guerra, lembrando que agora ninguém mais sai depois das 20h, que a maioria dos amigos já deixou o país, que a única iluminação noturna da cidade são os clarões dos tiros.

Na manhã de quinta-feira, estou a caminho de uma reunião no centro da cidade quando se ouve o estrondo de uma enorme explosão, mais poderosa e violenta que todas as outras.

O carro inteiro parece tremer, e tenho a impressão de que a força da detonação me arrancou as roupas. Os alarmes dos carros estacionados disparam, e um minuto depois minha noiva liga, chorando:

"Você ouviu?"

Eu: "Sim. Você está bem?"

A voz dela se perde por sob o som das sirenes de ambulâncias que correm para o lugar do atentado. O volume dos disparos aumenta. Cada um tem suas teorias sobre a natureza da conflagração: um míssil terra-terra, um carro-bomba, uma granada; e sobre o local -perto da via expressa Adawi, em Masraha, em Tijara...

Você inevitavelmente se lembra das pessoas que conhece e vivem nesses lugares e, a cada vez que uma linha de telefone está muda, pensa no pior.

REUNIÃO PÓS-BOMBA

Entre duas tentativas de telefonar para me assegurar de que minha família e meus amigos estão bem, o celular toca de novo; quando atendo, é a pessoa com quem eu tinha uma reunião às 14h.

"Houve uma explosão e toda a cidade está bloqueada; podemos remarcar para as 17h?" O ar é irrespirável, e eu respondo enquanto encaro a fumaça negra e densa que sobe ao ar ao longe.

"Também estou preso no trânsito. OK quanto às 17h".

Os disparos de artilharia recomeçam, um helicóptero sobrevoa a cidade, e o barulho não está nem perto de acabar em Damasco.


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