São Paulo, segunda-feira, 01 de janeiro de 2001

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BEM-VINDO AO SÉCULO 21
Um dos maiores pensadores norte-americanos diz que o próximo século será confuso se a selvageria não for controlada
Schlesinger teme continuação da barbárie

SÉRGIO DÁVILA
DE NOVA YORK

O historiador Arthur Schlesinger Jr. pretende começar o novo século da mesma maneira que passou boa parte do que acabou: usando sua indefectível gravata borboleta, com um copo de martíni na mão e (muitas) boas idéias na cabeça.
Aos 83 anos, o pensador é um dos mais importantes em atividade nos Estados Unidos, sendo consultado rotineiramente tanto pelo presidente Bill Clinton quanto pelos editorialistas do "The New York Times", que adoram usar suas frases como epígrafes de textos opinativos no prestigioso jornal.
Ganhador do Prêmio Pulitzer por "The Age of Jackson" (1946), ele acaba de lançar "A Life in the 20th Century", primeira parte de suas memórias, em que analisa o século que acabou do posto privilegiado de protagonista de vários dos principais fatos.
Schlesinger comandou a inteligência americana no pós-guerra na Europa, foi assessor direto do presidente John Kennedy nos anos 60 e diplomata em vários países.
Em entrevista exclusiva à Folha, instado a fazer previsões para o século que começa, disse que a China deve ser a superpotência dos próximos anos e acha que as guerras acontecerão internamente, não mais entre os países.

Folha - Qual a previsão que o sr. faz para o século 21?
Arthur Schlesinger Jr. -
Vai ser um século muito confuso, a menos que consigamos criar instituições internacionais para controlar toda essa selvageria aleatória que existe entre os países.
Quando a ONU foi formada, a grande ameaça para a paz era a invasão de fronteiras. Hoje, e cada vez mais neste século que começa, a maior causa de mortes está e estará nos conflitos internos dos países. São guerras civis, religiosas. E não temos um sistema internacional feito para lidar com esses problemas.
Com o republicano George W. Bush na Presidência dos Estados Unidos, é difícil prever o que pode acontecer ou quanta violência existirá entre os homens. O partido dele (Republicano), muito unilateral, se opõe às instituições internacionais.
Além disso, a economia caminha para a globalização, e isso significa que o alcance dos negócios vai muito além das fronteiras de cada país.
Temos nos Estados Unidos um organismo chamado SEC, Securities and Exchange Commission (agência semelhante à Comissão de Valores Mobiliários brasileira), que é uma proteção para os investidores e procura estabilizar os mercados. Precisamos agora de um "SEC internacional", que controle e modifique os problemas nascidos com a globalização.

Folha - O sr. já disse que as últimas eleições nos Estados Unidos encerraram um período que o sr. chama de "imperial Presidency", Presidência imperial. Na sua opinião, o fato de os Estados Unidos entrarem no século 21 com um presidente fraco como George W. Bush é sintomático? Ou Bush é melhor do que, por exemplo, William McKinley, o presidente que entrou no século 20 comandando o país?
Schlesinger -
O período de "imperial Presidency" acabou, na verdade, com o fim da Guerra Fria e da tensão entre as superpotências. Quando a crise internacional terminou, o poder começou a voltar para o Congresso.
A situação agora é maior e mais abrangente do que simplesmente o carisma de Bill Clinton ou de George W. Bush. Agora, quanto ao presidente, o que o jovem George fará? Quem sabe? Quem é ousado o suficiente para prever?

Folha - Na virada do último século, a maior potência ainda era a Inglaterra. O século 21 começa com os EUA no comando. O sr. acha que o país consegue manter o posto até o século 22?
Schlesinger -
Quem sabe a próxima superpotência não seja o Brasil (risos)? Na verdade, acho que será a China. Se eles conseguirem se levantar, os chineses são um povo muito inteligente e perseverante, trabalham duro e levam a vida num país habitado por 1 bilhão de pessoas, que falam várias línguas e dialetos. Ou seja, eles já são "globalizados" internamente faz tempo.
É difícil prever, mas sei que até o fim do século 21 o tipo de governo que temos hoje não será mais desejável.
As instituições internacionais serão a chave para a solução dos nossos problemas atuais e dos que estão por vir.

Folha - O sr. acaba de escrever um livro que analisa parte do século que acabou. Qual o saldo?
Schlesinger -
Tudo depende do que acontecerá no século 21. O lado positivo do último século é evidente, tivemos avanços incríveis na ciência, na medicina, na tecnologia. Todas essas coisas significam um progresso grandioso para a humanidade.
Mas foi também um século de selvageria sem igual, cheio de atrocidades e atos desumanos. O pensador inglês Isaiah Berlin me disse que o século 20 foi o mais terrível da história, e eu concordo.
Houve o Holocausto, os gulags, as crueldades do fascismo e do comunismo. E as coisas horríveis que continuam acontecendo na África, por exemplo, na Sérvia, na Bósnia, no Sri Lanka. Por todos os lados, há crueldade.
E a maioria das matanças foi feita com motivação religiosa. Na Índia, no Paquistão, no Oriente Médio, na Indonésia, nas Filipinas. A religião pode até ser uma coisa boa, mas causou mais mortes no século 20 do que qualquer outra coisa.

Folha - O século 21 verá outros Holocaustos?
Schlesinger -
Não da mesma forma. Mas o que tem acontecido na Libéria, em Serra Leoa, em Ruanda é tão ofensivo para a natureza humana como as duas outras grandes tragédias do século, o Holocausto e a Segunda Guerra, e não pode ser tolerado.

Folha - Um dos pontos mais polêmicos em seu último livro foi que, pela primeira vez, um intelectual respeitado escreveu com todas as letras que os Estados Unidos foram omissos e tardios em reconhecer os horrores nazistas. Por que isso aconteceu?
Schlesinger -
As pessoas simplesmente não acreditavam que aquilo poderia mesmo estar acontecendo. E, quando começaram a acreditar, era tarde demais. Os judeus estavam presos, e o único jeito de libertá-los era vencer a guerra o mais rápido possível.

Folha - O sr. foi um dos principais defensores de Bill Clinton durante o impeachment. Qual a avaliação que faz do governo dele, que acaba agora? Qual será seu legado para a história?
Schlesinger -
Também fico intrigado com isso. Acho que, no fim das contas, os eleitores norte-americanos fizeram as pazes com Bill Clinton. Eles o consideram um patife, mas um patife querido, aprenderam a gostar dele.
Foi um bom presidente. Se a lei permitisse a ele concorrer a um terceiro mandato ele venceria de novo, sem dúvida nenhuma. Acho que seu legado é ter movido o Partido Democrata para a direita e o Partido Republicano para a esquerda.
Deixe-me corrigir: na verdade, ele colocou o Partido Republicano na direção do centro. Ainda, se o seu legado tiver de ser resumido por um grande tema, será o de pacificador. Clinton buscou a paz na Irlanda do Norte, no Oriente Médio, na ex-Iugoslávia, na Tchetchênia.

Folha - O sr. foi íntimo de vários políticos importantes do século, como John Kennedy e Bill Clinton. Qual o maior de todos?
Schlesinger -
Bem, não conheci Franklin Roosevelt, que foi o maior presidente do século 20, conheci Harry Truman, mas pouco, e foi um presidente muito efetivo. Mas quem tinha as maiores qualidades como líder, embora nunca pudemos comprovar totalmente, era mesmo JFK.
Kennedy tinha uma grande capacidade de entender os problemas da população, era muito persuasivo, eloquente e possuía um enorme magnetismo pessoal, que poderia fazer dele um grande líder.



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