São Paulo, segunda-feira, 01 de janeiro de 2001

Texto Anterior | Índice

África carece de iniciativas endógenas, diz analista

DA REDAÇÃO

Os africanos devem enfrentar seus problemas e encontrar soluções regionais sem a tutela de organizações internacionais, que impõem políticas, como o ajustamento estrutural do Fundo Monetário Internacional (FMI), que negligenciam as consequências sociais e podem gerar violência.
A análise é do historiador e antropólogo ruandês José Kagabo, doutor em história da África, pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de livros sobre a África.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que ele concedeu à Folha, por telefone, de seu escritório em Paris. (MSM)
José Kagabo - É impossível fazer previsões para todo o continente, pois a África é muito heterogênea.
O norte da África é uma região bem mais voltada para o mundo árabe em razão da etnia de boa parte de sua população. Já a África do Sul é um país que apresenta uma situação privilegiada em diversas áreas, como a econômica e a tecnológica, em relação à maioria dos países do continente.
Há Estados africanos que se encontram em situação de decomposição, como Somália, Serra Leoa e Libéria. Há a região dos Grandes Lagos, na qual se encontram países destruídos por anos de guerra, como a República Democrática do Congo (ex-Zaire).
A África francófona engloba ex-colônias francesas, como a Costa do Marfim e o Senegal, que se situam no oeste do continente. Esses países tiveram uma evolução política e econômica estável até há alguns anos. O bloco central também é francófono, mas alguns de seus países foram colonizados pela Bélgica (RDC, Ruanda e Burundi). A República do Congo e o Gabão fazem parte desse grupo, porém foram colônias francesas.
Existe o bloco do leste do continente, que deve ser subdividido. De um lado, há o Chifre da África, composto por Eritréia, Etiópia e Sudão. De outro, mais ao sul, temos Quênia, Tanzânia e Uganda.
Cada um desses blocos teve uma evolução diferente, e, mesmo dentro deles, a formação política não foi uniforme. Apesar disso, há aspectos comuns à maior parte dos países de cada bloco.
Eles tinham de se posicionar em relação aos grandes blocos mundiais, ocidental ou soviético, durante a Guerra Fria. Assim, no início dos anos 60, foi lançada a idéia da unidade africana, e a Organização da Unidade Africana foi fundada (1963). Contudo, se analisarmos sua atuação, veremos que ela pouco fez para solucionar os problemas africanos, pois não tem meios políticos ou econômicos.

Folha - Então não há esperança?
Kagabo -
Sem dúvida, há esperança. Na esfera econômica, o bloco central é rico em recursos naturais, como as riquezas minerais da RDC ou o petróleo do Gabão. O erro é que esses países desenvolveram economias voltadas para a exportação. Um mercado sobre o qual não têm influência.
Estima-se no Ocidente que as elites tenham lucrado -e ainda lucrem- com esse quadro, mas isso não é certo. Só um grupo de privilegiados, como o ditador do Zaire (hoje RDC) Mobutu Sese Seko, tiraram vantagem disso.
Isso fez com que houvesse -e ainda haja- uma grande fuga de cérebros, o que é a primeira coisa que deve acabar, pois, sem sua elite intelectual, a África não encontrará solução para suas crises.

Folha - A globalização pode ajudar a atenuar esses problemas?
Kagabo -
Na África, a globalização não é um fenômeno novo. Desde o início da colonização européia, no século 19, houve uma enorme abertura para o mundo exterior. Para o continente, o fenômeno pode representar uma chance de escapar de suas limitações, porém, se as oportunidades não forem aproveitadas, ele não será de grande auxílio.
É claro que, se tivesse dinheiro e vontade política, a África poderia aproveitar-se das novas tecnologias para se abrir ainda mais para o mundo. Mas, para tanto, ela teria de canalizar os poucos recursos que tem para essa direção.

Folha - As instituições internacionais podem colaborar mais ativamente na luta contra a fome?
Kagabo -
É o que ocorre hoje, no entanto isso gera dependência. Não creio que o problema como um todo possa ser resolvido por organizações internacionais.
Elas deveriam intervir somente em caso de catástrofe. Entretanto, de um ponto de vista estrutural, seria necessário um grande investimento na modernização da agricultura africana. Há uma enorme superfície fértil e água em abundância, faltam apenas métodos mais eficazes de cultivo e colheita.
As instituições internacionais podem ajudar a financiar a melhoria desses métodos. Porém os países africanos devem estar em condições de manter sua autonomia. Com políticas de ajustamento estrutural ditadas pelo FMI, há uma visão estritamente econômica, que negligencia as consequências sociais e, muitas vezes, acaba gerando mais violência.

Folha - E as Nações Unidas?
Kagabo -
A atuação da ONU na Somália ou em Ruanda deixou marcas negativas, e sua credibilidade foi gravemente minada.
Além disso, a ONU é muito dependente das grandes potências ocidentais, cujos interesses não coincidem necessariamente com os da África. Creio que esses países, que até pouco tempo atrás conseguiam chegar a um consenso para resolver crises, estão hoje ocupados demais com seus próprios problemas. A Europa, por exemplo, aplica a maior parte de sua energia na construção de um bloco regional e deixou de se preocupar tanto com a África.

Folha - O panorama é sombrio?
Kagabo -
Sem dúvida. Há muita retórica e pouca ação no Ocidente. Creio que chegou a hora de os africanos enfrentarem seus próprios problemas e conceberem soluções regionais ou locais.
Sem paz, contudo, isso é impossível. Pode parecer ingênuo, mas creio que, num futuro próximo, boa parte dos conflitos africanos esteja resolvida, pois os recursos materiais para fazer a guerra são limitados. O quadro é trágico hoje, porém não podemos dizer que não haja esperança para a África.


Texto Anterior: Bem vindo ao século 21: UE maior pode causar concentração de poder
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.