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OPINIÃO
Espanto e medo são primeiras sensações
Vidros quebrando, coisas caindo e estalos nas paredes são os ruídos ouvidos; solidariedade estreita sentido de equipe
ANA MARIA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM SANTIAGO
Espanto e medo, as duas primeiras sensações. Ainda dormindo, sinto a cama balançar,
deslizar e trepidar enquanto algo me sacudia como num pesadelo. Ao abrir os olhos, no escuro, sem entender o que estava
acontecendo, de repente me
ocorre que, se tudo esta tremendo assim, deve ser um terremoto.
Entrava uma fresta de luz por
baixo da porta, fui até lá e abri.
A essa altura, tudo já sacudia
muito forte. Barulho de vidros
quebrados e coisas caindo, estalos dentro das paredes. Do
outro lado do corredor, Jorge
Eslava, escritor peruano e companheiro do mesmo congresso,
segura-se no umbral de sua
porta, me chama pelo nome e
me diz: "Este é dos fortes..."
Pergunto-lhe: "Que faço?"
"Isso mesmo que estas fazendo. Fica aí. Assim que parar,
descemos. Teu sapato está por
perto? Se estiver, pega antes de
descer para não se cortar se tiver vidro quebrado no chão."
Quando o tremor diminui, sigo as instruções e ainda pego
um casaquinho que estava a
mão. Pelas escadas vamos encontrando outros hóspedes
descendo. Reboco caído pelo
chão, teto de gesso despencado,
papel de parede solto, quadros
e abajures derrubados. No saguão do hotel, funcionários nos
instruem a sair e esperar lá fora. Longe do prédio para não
sermos atingidos por algo que
despenque. Procuro os amigos
no meio da pequena multidão.
Vejo Marisa enrolada no lençol. Ambas assustadas, nos
abraçamos. Os outros vão chegando, igualmente com medo e
querendo abraços. Beth, Lygia,
Dolores, Yolanda, Sylvia, Daniel, Antonio, Sérgio, Tania, Susana, Angela. Conferimo-nos
mutuamente. Muita confusão.
A rua toda escura, só o gerador do hotel com suas luzes de
emergência. Carros saem com
faróis acesos dos estacionamentos subterrâneos, todos se
afastam para deixar que escapem para longe. Pelo asfalto,
veículos passam muito rápido.
Parece que todos os cachorros do mundo latem ao mesmo
tempo. Sirenes de bombeiros,
ambulâncias. Barulho de batidas de automóveis. Mais outra
em seguida. E mais outra. Claro: todos fogem e os sinais não
funcionam.
Ficamos ali em pé, em roupa
de dormir. Um ou outro chegou
a se vestir completamente antes de descer. Os funcionários
do hotel servem água. A equipe
de acolhimento do congresso
nos acalma, conversa, dá instruções. Entre elas, daí a umas
duas horas, nos dizem para entrar. Insistem. Aos que estão
com medo, explicam: estão começando os assaltos. Vemos os
bandos rondando. Entramos
no saguão onde vamos ficar o
dia inteiro, prontos para sair
cada vez que começar novo tremor. São muitos, mas felizmente todos mais fracos.
Aos poucos, cada um enfrenta o medo, volta ao quarto, pega
algumas coisas, muda a roupa,
faz seu kit de sobrevivência que
passa a carregar pra todo lado
desde então -documentos,
carteira, uma muda de roupa
básica, telefones celulares, óculos.
Só o que se quer então é falar
com a família, dar notícias. A
comunicação é muito precária.
Acesso intermitente a televisão. Telefones, internet e celulares não funcionam. Quem
tem blackberry compartilha
com todos, quem consegue falar com o Brasil pede para dar
recado aos parentes dos outros.
Durante todo esse primeiro dia
é assim. Estreita-se uma rede
de solidariedade e sentido de
equipe.
Eu deveria ir para o aeroporto duas horas depois, voltando
para casa. Mas logo se constata
que vai ser impossível que esteja aberto. Até agora não se sabe
ao certo quando abrirá. Tudo é
incerto e precário. Mas lembro
de meu pai, quando eu era
criança: eu devia era rezar para
o meu anjo da guarda e agradecer. Estou bem, entre amigos,
não aconteceu nada a nenhum
de nós. Triste consolo, em meio
a um país desolado, atingido
pela dor.
ANA MARIA MACHADO é escritora, autora de
"Palavra de Honra" (Nova Fronteira) e "Brincadeira de Sombra" (Global). É secretária-geral da
Academia Brasileira de Letras e recebeu o Prêmio Hans Christian Andersen, o mais importante da literatura infantil.
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