São Paulo, sábado, 01 de maio de 2004

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ARTIGO

Discurso de Bush não bate com a realidade

PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"

"Todos nós somos capazes de acreditar em coisas que sabemos não serem verdade, e então, quando finalmente se comprova que estávamos errados, pura e simplesmente distorcemos os fatos para indicar que estávamos certos. Intelectualmente, é possível levar esse processo adiante por tempo indefinido: o único problema é que, cedo ou tarde, uma idéia falsa se choca com a realidade sólida, geralmente no campo de batalha." O trecho é tirado do ensaio de George Orwell "In Front of Your Nose" (diante de seu nariz), de 1946. Parece ser especialmente relevante agora, quando vemos os destroços da aventura americana no Iraque.
Amanhã um ano terá se passado desde que George W. Bush aterrissou sobre um porta-aviões, anunciando "missão cumprida". Ao longo de todo esse ano, até o aumento da violência verificado neste mês, autoridades do governo nos asseguraram que as coisas estavam indo bem no Iraque. O padrão de vida, disseram, estava melhorando. A resistência consistia só de um punhado de combatentes, auxiliados por alguns estrangeiros -e cada momento de calmaria entre ataques era acompanhado de declarações de que a campanha contra os insurgentes já passara pelo pior.
Quer dizer que mentiram para nós. E o que há de novo? No entanto há mais em jogo aqui do que a credibilidade do governo. A história oficial apresentou um círculo virtuoso de reconstrução nacional, algo que, com o tempo, levaria a um Iraque democrático, aliado aos EUA. Na realidade, parece que estamos diante de um círculo vicioso, no qual a deterioração da situação de segurança solapa a reconstrução. Pode essa situação ainda ser salva?
Mesmo entre os críticos acirrados da política do governo para o Iraque, a posição mais comum é que precisamos concluir o trabalho. Você já ouviu os argumentos: nós compramos a briga, nós quebramos o que havia. Não podemos simplesmente dar o fora. Precisamos continuar até acabar o serviço. Compreendo o apelo desses argumentos, mas a aritmética me preocupa.
Todas as informações às quais pude ter acesso indicam que a situação no Iraque está realmente ruim. Não é bom sinal quando, um ano depois de iniciada uma ocupação, o Exército ocupante manda vir mais tanques.
Os civis ocidentais se refugiaram em encraves armados. As forças americanas têm condições de defender esses encraves e, provavelmente, de manter o fluxo de suprimentos essenciais. Mas não dispomos de tropas suficientes para forçar uma mudança no círculo vicioso. As forças iraquianas que supostamente iriam preencher o vácuo de segurança desabaram -ou se voltaram contra nós- diante dos problemas.
E todas as propostas que ouvimos para resolver essa situação grave parecem ser ou pouco praticáveis ou muito aquém do que é necessário. Alguns dizem que deveríamos enviar mais soldados ao Iraque. Mas as Forças Armadas americanas não têm mais soldados a enviar.
Outros dizem que devemos buscar mais apoio de outros países. Pode ter havido um tempo -por exemplo, no último verão americano- quando os EUA poderiam ter fechado um acordo: cedendo muita autoridade à ONU, talvez tivéssemos conseguido persuadir países que têm Exércitos grandes, como a Índia, a contribuir com grande número de tropas de paz. Mas é difícil imaginar que qualquer país, hoje, vá enviar forças significativas para o caldeirão iraquiano.
Alguns depositam suas esperanças numa solução política: acham que a violência vai diminuir se se permitir que a ONU indique um governo interino que os iraquianos não vejam como sendo fantoche dos EUA.
Esperemos que eles tenham razão. Mas vale a pena lembrar que, neste momento, os EUA ainda pretendem entregar a "soberania" a um organismo, ainda sem nome, que praticamente não terá poder algum. Para todas as finalidades práticas, quem vai presidir o país será o embaixador americano. Os americanos podem acreditar que tudo vai mudar em 30 de junho, mas é pouco provável que os iraquianos se deixem enganar. Por falar nisso, boa parte do mundo árabe acredita que cometemos crimes de guerra em Fallujah.
Não tenho um plano para o Iraque. Mas desconfio que todos os planos que se ouvem agora sejam irrelevantes. Se os líderes americanos não tivessem tomado tantas decisões erradas, poderiam ter tido uma chance de moldar o Iraque da maneira como queriam. Mas essa janela se fechou.


Tradução de Clara Allain


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