São Paulo, quinta-feira, 01 de junho de 2006

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opinião

Alan García, redenção e o aprismo

NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Voltamos à normalidade", disse com ironia um jornal de Lima diante de mais um dos tantos golpes acontecidos no Peru. Era um período de safra abundante: de 1931 a 1936, dois governos foram derrubados, logo se instalou uma ditadura de oito anos, e em 1968 militares tomaram o palácio de assalto -com tanques derrubando portões, e o presidente deposto saindo quase só com a roupa do corpo. Em 1975, um golpe dentro do golpe substituiu os generais no poder e abriu caminho para a "redemocratização" e o triunfo, em 1985, de um aprista de 36 anos, Alan García. Em todos esses acontecimentos teve presença marcante, em oposição aos quartéis, um movimento nascido nos anos 20 e inspirado na revolução mexicana: a Apra, Aliança Popular Revolucionária Americana. O homem que o lançou, Victor Rául Haya de la Torre, então um jovem estudante peruano no exílio, iria se tornar talvez o político mais idolatrado da história do Peru. Apesar disso, de vencer eleições e de apoiar vencedores, ele jamais conseguiu instalar-se no poder. Era odiado pelos militares por causa de rebelião sangrenta em Arequipa. Já idoso e doente, contentou-se em presidir a Constituinte convocada depois de 1975. Numa das ditaduras se viu obrigado a asilar-se na embaixada da Colômbia, onde ficou oito anos, até 1956, vigiado dia e noite. Quando afinal conseguiu salvo-conduto, passou pelo Brasil a caminho da Europa, alugou casa em Bruxelas e viveu de conferências. Os dons de orador já eram conhecidos em círculos europeus -Haya foi quem falou em nome de sua turma numa universidade britânica. A Apra se enraizou de tal modo na sociedade peruana que filho de aprista já nascia aprista. Seus "comedores" (restaurantes populares) se espalharam por todo o pais, e a militância dispunha de cursos de formação política, numa espécie de central de movimentos sociais. A provável segunda vitória de Alan García, com a Apra já transformada em Partido Aprista Peruano, não deixa de ter um componente histórico de primeira grandeza. Embora com outra cara e com carteirinha de uma Internacional Socialista em quase inanição por fadiga, o aprismo de hoje procura, pelo menos no discurso, adaptar e preservar como bagagem indispensável a mensagem de Haya. Há uma história cuja vigência é reiterada. O ato de fundação em 1923, no México, teve uma bandeira "indo-americana" e a pretensão de criar um movimento continental, com base em valores nativos, "anti-imperialista", de recusa a oligarquias "ligadas aos Estados Unidos" e a revolução mexicana como pano de fundo. Também a inspiração do nacionalista cubano José Marti. Quando se elegeu em 1985, Alan García era visto como portador de um mandato de mudanças, de centro-esquerda, em favor dos pobres, ele próprio se dizendo anti-imperialista, identificado com as raízes da Apra. Nada deu certo, e García afundou na hiperinflação, mais pobreza e tensões sociais -sem falar em denúncias de corrupção. Ele sabe que terá dificuldades com um Congresso mais voltado para seu adversário, Ollanta Humala. Ameaça dissolvê-lo se seus planos forem bloqueados. É a procura da redenção, bem ou mal, com a bandeira do aprismo.


O jornalista NEWTON CARLOS é analista de questões internacionais


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