São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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EUROPA

80% dos "clientes" da Dignitas, que oferece suicídio assistido, são estrangeiros, atraídos pela permissividade da legislação do país

Ação de ONG suíça cria "turismo do suicídio"

F. Dimier & G. Plisson/Libre Arbitre
A enfermeira Erika Luley, da Dignitas, prepara barbitúrico para o suicídio assistido de francesa


ROGERIO WASSERMANN
DA REDAÇÃO

Aos 90 anos, o astrofísico alemão Herbert Mataré continua ativo, trabalhando em um estudo sobre "eletrônica do estado sólido". Mas, acometido por um reumatismo e por um câncer de próstata em estado avançado, pretende se suicidar quando a doença o tornar incapaz.
Mataré é um dos cerca de 2.000 associados da organização suíça Dignitas, que promove suicídios assistidos em um apartamento alugado em Zurique. Desde a fundação da organização, há quatro anos, 140 pessoas já se suicidaram no local, tomando uma dose letal de barbitúricos preparada por enfermeiros da organização.
Cerca de 80% dos "clientes" da Dignitas são estrangeiros, atraídos pela permissividade da legislação suíça. Os alemães são a maioria, mas há também britânicos, franceses, holandeses e americanos.
Apesar de condenar a eutanásia (abreviação, sem dor, da vida de doente incurável), a legislação suíça não pune a prática do suicídio assistido, que consiste na ajuda para que uma pessoa termine com sua própria vida -desde que um médico ateste que não há chances de cura e que o paciente seja capaz de tomar a decisão livremente.
A legislação torna a Suíça um dos poucos locais onde a prática é permitida. No Estado do Oregon, nos EUA, a lei permite o suicídio assistido, mas a oposição a ela é grande e torna sua aplicação difícil. O médico Jack Kevorkian, que ajudou 130 pessoas a se matar nos EUA em dez anos, foi condenado em 1999 a uma pena de prisão de 10 a 25 anos por um dos casos. Kevorkian, que inventou um aparelho que ajuda a pessoa doente a se suicidar, ficou conhecido como "Doutor Morte".
Mesmo a eutanásia ainda é ilegal em praticamente todo o mundo. Apenas a Holanda e a Bélgica descriminaram a prática recentemente. Em 1996, a Espanha reduziu de 20 para três anos a pena de prisão por eutanásia.

Trabalho humanitário
"Nosso trabalho é totalmente legal", disse à Folha o advogado Ludwig Minelli, 69, fundador da Dignitas e militante da causa pró-eutanásia há mais de uma década. "Não atuamos com egoísmo, nosso trabalho é humanitário. Ajudamos pessoas que estão sofrendo", afirma.
Segundo ele, os interessados em se suicidar precisam enviar à organização documentos médicos comprovando o diagnóstico de doença incurável ou que provoque incapacitação física grave. Médicos ligados à associação analisam os documentos e atestam se a pessoa cumpre os requisitos para o suicídio assistido. No caso dos estrangeiros, a "saída", como se refere muitas vezes Minelli ao suicídio, pode ser realizada no mesmo dia em que a pessoa chega à Suíça, após o contato prévio e a análise da documentação.
A pessoa é levada ao apartamento alugado pela organização em Zurique, onde uma enfermeira prepara uma dose letal de pentobarbital de sódio. Tomada misturada a uma bebida qualquer -"pode ser até refrigerante", diz Minelli-, ela levará a pessoa ao coma e à morte indolor em poucos minutos. Minelli diz que nunca está presente no momento dos suicídios.
A organização é mantida com uma taxa anual de 36 francos suíços (cerca de R$ 90) dos associados e eventuais doações. As seis pessoas que trabalham lá são voluntárias.

Críticas
O trabalho feito pela Dignitas vem provocando polêmica na Suíça, onde um deputado já apresentou um projeto para tentar proibir os estrangeiros de se beneficiar da permissiva lei local.
O promotor público Andreas Brunner também colocou a organização na mira e questiona a sua capacidade de determinar quem está apto ou não a fazer um suicídio assistido com base apenas nos prontuários médicos enviados do exterior.
O promotor também alega que o fato de estrangeiros viajarem à Suíça com o único intuito de fazer um suicídio assistido coloca sobre eles uma pressão que os impede de desistir no meio do caminho.
Minelli contesta as acusações e diz que não pode escolher as pessoas a quem vai ajudar pelo passaporte. Segundo ele, o trabalho que desenvolve é "necessário". "Resolvi fazê-lo porque alguém tinha de fazê-lo", diz.
"Por causa de medidas de higiene e dos avanços da medicina, as pessoas hoje chegam a idades bastante avançadas e podem desenvolver doenças muito severas, que, antigamente, quando as pessoas morriam com 30 ou 35 anos de pneumonia, não eram conhecidas", diz.
"Se você vê alguém com esclerose múltipla, com câncer de garganta, são doenças muito difíceis, que causam muita dor. Muitas pessoas não têm condições de administrar essa dor, porque os medicamentos não funcionam mais ou porque seus efeitos colaterais são ainda piores que a dor", afirma Minelli. "Se você comprova que não existe outra maneira de ajudar essa pessoa, deve ajudá-la a morrer, para que pare de sofrer, e evitar riscos."
Ele tem um discurso utilitarista para explicar a importância que vê em seu trabalho. "O número de tentativas de suicídio no mundo é cinco vezes superior ao dos suicídios efetivos", diz. "Deveríamos evitar riscos. Se a sociedade soubesse o alto custo e o risco envolvidos nessas tentativas de suicídio frustradas, talvez passasse a discutir mais a questão."
Minelli afirma ainda que a organização também serve para evitar o suicídio em alguns casos. Segundo ele, muitas das pessoas que procuram a Dignitas pensando em se suicidar acabam desistindo da idéia depois.
"Tivemos um caso de um alemão de 20 anos, há um ano, que queria morrer imediatamente. Ele veio aqui, ficou na minha casa por seis dias, discutimos a questão, ele voltou para a Alemanha, procurou um psiquiatra e agora está vivendo bem", conta. "Era só uma crise em sua vida, ele tinha acabado de deixar uma instituição psiquiátrica quando nos telefonou."
Segundo Minelli, há um grande número de pessoas que faz todos os preparativos para viajar a Zurique para se suicidar, mas acaba desistindo, porque "pode viver sem a tensão da morte dolorosa". "Só de saber que, se precisarem, terão a chance de uma saída tranquila, isso já os acalma", diz.
Contra os questionamentos que recebe, Minelli utiliza como argumento o trabalho de são Thomas Morus, que em seu livro "Utopia", de 1517, escreveu que, "se uma doença é incurável, a pessoa doente pode escolher a morte, já que a vida não pode lhe oferecer mais nada de positivo".
"Em 31 de outubro de 2000, o atual papa apontou Thomas Morus patrono dos políticos", argumenta ele. Isso quer dizer então que ele considera que a Igreja Católica apoiaria o trabalho que desenvolve? "Não sei sobre a Igreja Católica, mas o homem mais importante dentro da igreja parece que tem essa idéia", afirma.


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