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ENTREVISTA/
JOSÉ LUÍS FIORI
Estratégia imperial dos EUA segue em expansão
Cientista político discorda de previsões sobre fim da hegemonia americana, mas vê América Latina mais independente
Apesar do fracasso no Iraque e da perda de credibilidade, os EUA seguem em frente com uma "estratégia
imperial" que é anterior à eleição de George W. Bush.
Ela é reiterada nos programas de todos os candidatos
à sucessão americana, diz o cientista político José
Luís Fiori. Nesta entrevista, feita por e-mail, o professor da UFRJ fala dos temas do seu novo livro, "O Poder Global" (editora Boitempo), quarto de uma série
sobre o sistema mundial moderno.
CLAUDIA ANTUNES
EDITORA DE MUNDO
FOLHA - O sr. refuta a idéia do fim
da hegemonia americana tal como
exposta pelos sociólogos Giovanni
Arrighi e Immanuel Wallerstein.
Mas também afirma que o mundo
caminha para ter novos pólos de poder. Não haveria mais coincidências
do que divergências entre a sua análise e a deles?
JOSÉ LUÍS FIORI - Minha divergência com Arrighi e Wallerstein não é conjuntural, é teórica. Os dois sustentam suas projeções de longo prazo na hipótese de que o sistema mundial
moderno requer a existência
de potências hegemônicas sucessivas para manter a ordem
política e o bom funcionamento da economia internacional.
O chamado "hegemon" aparece como um tipo de resposta
funcional ao problema da ingovernabilidade de um sistema
que é anárquico porque é formado por Estados soberanos.
Em geral, essa teoria destaca
as contribuições positivas do
hegemon para a governança
global. Só que ela não consegue
dar conta do movimento de expansão dos Estados e economias nacionais que já fazem
parte do núcleo central do sistema, mas continuam competindo entre si, mesmo nos períodos que aparentem uma alta
tranqüilidade sistêmica.
Foi a crítica dessa teoria que
me levou ao conceito de poder
global do livro.
FOLHA - E o que isso significa?
FIORI - É um modo de análise
que privilegia o movimento e as
contradições que movem o sistema mundial, impedindo sua
estabilização e qualquer tipo de
governança global estável.
O sistema se parece com um
universo em expansão contínua, movido pela luta das grandes potências pelo poder global
e que por isso estão sempre
criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, paz e guerra.
O que o ordena e estabiliza não
são os hegemons, mas a existência do que chamo de "eixos
conflitivos crônicos" e a possibilidade permanente de guerra.
O sistema não acumula poder e riqueza sem a competição
das nações e não se estabiliza
sem as guerras.
FOLHA - O sr. não admite nem que
haja uma crise da hegemonia americana -que estaria dada pelo ultraesforço militar no Iraque, os déficits crescentes, a bolha imobiliária, a
perda de credibilidade?
FIORI - O que estou tentando
dizer é que não se consegue saber o que significa exatamente
crise da hegemonia americana.
Qualquer bolha econômica ou
mesmo guerra, enfrentada ou
perdida pelos EUA? Se for assim, afirmar que existe uma crise da hegemonia é apenas uma
frase fácil, sem significado ou
conseqüência precisa.
Mas se o caso for anunciar o
fim da hegemonia americana,
discordo totalmente. Acho que
a estratégia imperial americana
continua em curso expansivo,
apesar de suas dificuldades.
Com a eleição de Bush e os
atentados de 2001, a política
externa adotou uma retórica
mais belicista e assumiu de forma explícita um projeto imperial. Mas a estratégia imperial
já vinha de antes, e se manteve
a mesma, desde o fim da Guerra
Fria. Ela acumulou vitórias,
mas também vem enfrentando
problemas para seguir se expandindo.
FOLHA - E quais são os problemas
principais que o sr. identifica?
FIORI - Está cada vez mais difícil para os EUA manter a ordem
e impor suas posições dentro
dos territórios periféricos, que
nasceram da desmontagem do
sistema colonial europeu.
Por outro lado, foi a estratégia expansiva dos EUA que incentivou em boa parte a transformação asiática que hoje lhe
escapa ao controle. Os norte-americanos não têm mais como frear a expansão econômica
da China nem podem mais seguir em frente com sua estratégia global sem contar, pelo menos, com uma parceira chinesa.
Além disso, a Alemanha e a
Rússia voltaram para o jogo do
poder europeu e internacional.
Hoje esses dois países estão reconstruindo suas zonas de influência na Europa e na Ásia
Central, limitando as ambições
americanas nessas regiões.
FOLHA - Não há um certo fatalismo
na sua previsão de retorno à velha
disputa entre potências, como no final do século 19 e início do 20?
FIORI - Isso é uma frase de efeito e uma forma de explicar o
reaparecimento nos noticiários
das disputas entre EUA e Rússia, China e Japão, Alemanha e
França etc. Na verdade a disputa entre as grandes potências
nunca terminou, apenas arrefeceu como costuma acontecer
depois de uma grande guerra
ou vitória contundente, como
foi o caso da Guerra Fria.
FOLHA - Como esse quadro internacional se reflete nas próximas
eleições nos EUA?
FIORI - As divisões internas estão aumentando e é provável
que, depois do fracasso do Iraque, ocorra um realinhamento
de forças dentro do establishment. Mas esses processos são
lentos, e não é provável que o
novo realinhamento coincida
com as eleições de 2008.
Os programas dos principais
candidatos democratas e republicanos mostram que a velha
estratégia imperial se mantém
de pé. Todos se propõem a reconstruir a liderança mundial
dos EUA e todos defendem a
necessidade de uma diplomacia multilateralista. Mas, ao
mesmo tempo, propõem aumentar os gastos e contingentes militares e multiplicar os
investimentos em inovações
tecnológicas para uso em guerras assimétricas.
O mais interessante é que
quase todos os candidatos propõem a criação de agências civis encarregadas de reconstruir
e administrar os territórios
atingidos pelo poder americano, como na burocracia imperial da rainha Vitória.
FOLHA - O sr. aponta a falência das
interpretações que previam o fim
dos Estados. Hoje, em parte por causa do chamado nacionalismo de recursos, eles retomaram seu protagonismo. Mas isso coincide com
uma crise dos sistemas políticos e
dos partidos. Quais as possíveis conseqüências desse paradoxo?
FIORI - A crença no fim dos Estados teve uma força particular
na América Latina e nos países
que nasceram da antiga URSS,
onde foram aplicadas de forma
mais rigorosa as políticas neoliberais. Fora daí ninguém nunca
tomou isso muito a sério.
Já em relação à chamada crise dos sistemas e partidos políticos, não é também a primeira
vez que se fala disso. Na década
de 60 falou-se muito do fim das
ideologias e dos partidos ideológicos. Nos anos 70, falou-se
da crise do sistema democrático, mesmo na velha Europa.
Hoje mesmo só se fala dessa
crise de partidos em alguns
países e sempre em comparação com um modelo ideal que
nunca existiu em lugar nenhum. Por todo lado, os partidos conservadores cumprem o
papel de sempre. Os de esquerda é que talvez estejam passando por crise de identidade e por
um período de mudança.
FOLHA - Mas em muitos países da
América Latina houve a falência de
partidos tradicionais e ela trouxe riscos de autoritarismo. Em que medida um projeto como o de Chávez,
por exemplo, sobrevive sem ele?
FIORI - A América Latina é um
bom exemplo porque se fala em
suposta crise dos partidos exatamente nos países onde ocorreram vitórias de forças progressistas e onde as forças políticas tradicionais sofreram revezes. São em geral países que
viveram longos períodos ditatoriais sob controle de forças
políticas conservadoras que se
alternavam no poder, desqualificando o processo de alternância democrática.
Mas nesses países têm havido agora eleições e plebiscitos
repetidos. São sistemas em
processo de reestruturação,
que levará algum tempo. Nesses momentos de mudanças
profundas talvez caiba retomar
a velha tese do sociólogo alemão Max Weber sobre o papel
do carisma ou das lideranças
carismáticas como quase único
caminho possível para reformar estruturas e instituições
políticas tradicionais, patriarcais ou patrimoniais, esclerosadas mas com enorme capacidade de preservação.
Hoje é possível identificar na
América Latina vários casos de
lideranças carismáticas, cuja
força política transcende suas
organizações partidárias. Em
todos esses casos, como dizia o
próprio Weber, a sucessão será
um problema difícil porque o
carisma é intransferível.
FOLHA - Que exemplos históricos o
sr. tem em mente?
FIORI - Quando falo da força
das lideranças carismáticas, e
do seu papel transformador na
história, para ficar fora da América Latina e acima do Equador,
penso nos nomes de [Charles]
De Gaulle, [Winston] Churchill
e [Franklin] Roosevelt.
FOLHA - Morales e talvez Lula também seriam líderes carismáticos?
FIORI - Creio que Morales e Lula também transcendem muito
suas organizações partidárias.
Mas acho impossível chegar a
um acordo sobre esse assunto e
que a provocação intelectual
está na idéia de Weber e não
nos exemplos que cabem mais
ou menos no conceito.
FOLHA - O sr. diz que a América Latina está vivendo "talvez uma ruptura revolucionária". Há diferença
entre a chamada onda vermelha de
hoje e o velho antiimperialismo?
FIORI - Acho que existem pelo
menos duas diferenças fundamentais. A primeira é que hoje
já não existe mais a mesma
identidade entre competição
geopolítica e bipolarização
ideológica que marcou a segunda metade do século 20. E a segunda é que a liderança progressista da América Latina
atual não atende mais pelo
mesmo nome e não defende
nem está implementando o
mesmo projeto de governo.
Hoje a América Latina é um
campo muito mais aberto para
a inovação social e política, sem
dogmatismos. Os EUA mantêm
e podem sempre reafirmar seu
protagonismo no continente.
Mas a novidade talvez esteja do
outro lado do balcão, dos novos
governantes que têm mostrado
vontade de mudar o tipo de relação secular que mantêm com
os EUA. O grau de liberdade de
ação dos EUA fica muito menor
do que quando contava com o
apoio quase incondicional das
elites empresariais e dos governos do continente.
FOLHA - Muitos apontam uma descentralização do poder econômico,
dado que o estouro da bolha imobiliária nos EUA não contaminou os
emergentes. O sr. concorda?
FIORI - O estouro da bolha imobiliária não chega a ser um bom
exemplo porque o BC americano decidiu proteger os mercados e manter o ritmo imediato
da atividade econômica.
Ninguém sabe calcular exatamente o que teria ocorrido se
os EUA tivessem agido ao contrário, nem o efeito de médio
prazo da decisão tomada. Qual
será o impacto, por exemplo, da
desvalorização do dólar sobre
as exportações das economias
atreladas ao euro?
Hoje só é possível especular
sobre as conseqüências de uma
desaceleração da economia
americana ou de uma retomada
acelerada das exportações dos
EUA, com diminuição do seu
déficit comercial. Em qualquer
caso haverá transferência de
custos a outros países.
NA INTERNET - Leia a íntegra da entrevista em
www.folha.com.br/073334
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