São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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ELEIÇÃO NOS EUA / DE AZARÃO A ALVO

Biografia peculiar traz armadilhas para campanha de Obama

Senador luta para separar fatos de ficção na história de sua vida, que tem passagens desconhecidas do grande público

Favorito, democrata vira alvo de desinformação; a mais persistente é a de que é muçulmano, religião de seu avô paterno do Quênia

SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON

Na noite da Superterça, no dia 5 de fevereiro último, estava claro ao comando da campanha de Barack Obama que o senador havia provado ao seu Partido Democrata que tinha uma qualidade que todos achavam que lhe faltava: elegibilidade. Afinal, ganhara da rival Hillary Clinton em 13 dos 23 Estados que realizaram primárias partidárias para escolher os candidatos à eleição presidencial de novembro.
Estava cumprida a última etapa do chamado "Plano Estratégico", ou simplesmente "O Plano". Este norteia a vida política de Obama desde que ele assumiu seu posto no Senado, em 2005, conforme conta o jornalista David Mendell na biografia "From Promise to Power" (da promessa ao poder).
Criado pelo chamado Grupo de Chicago, formado por nomes conhecidos nos bastidores políticos, como David Axelrod e Robert Gibbs, O Plano é seguido à risca pelo senador de 46 anos. Previa, por exemplo, que ele passasse seu primeiro ano em Washington "abaixo da linha do radar", evitando se envolver em legislação polêmica.
"Então, no ano seguinte, ele faria um grande evento midiático, que acabou sendo sua viagem ao Quênia, que seria seguido pelo lançamento da segunda parte de sua biografia, "A Audácia da Esperança", que seria seguido de um tour e culminaria no lançamento da candidatura à Presidência", disse Mendell à Folha, por telefone.

De estrategista a alvo
O objetivo do político era chegar às primárias com o nome forte o suficiente para fazer campanha para o escolhido de seu partido e até pleitear o cargo de vice-presidente. Mas a corrida dera mais certo do que o previsto, e Obama poderia ser o candidato. Agora, O Plano precisava de uma revisão.
"O senador precisa de tempo", disse David Axelrod a jornalistas que estavam em Chicago na Superterça. "Tempo para ser conhecido no resto do país." É o que Barack Obama vem fazendo desde então. No dia 6 de fevereiro, ele perdia de Hillary nas pesquisas de intenção de voto no Texas e em Ohio por cerca de 20 pontos percentuais. Hoje, a dois dias das primárias naqueles Estados, está em empate técnico no primeiro e encostado no segundo.
Mas há efeitos negativos. "Com isso, ele passou de excentricidade a alvo", disse Mendell. E a arma de preferência de ataque tem sido a desinformação. Na semana passada, o site conservador Drudge Report publicou uma foto em que Obama aparece de roupas e turbante tradicionais somalis, que ganhou durante a tal viagem de 2006 ao Quênia.
No dia seguinte, durante comício do republicano John McCain, um radialista o chamou várias vezes de Barack Hussein Obama, seu nome de batismo, o mesmo de seu pai. A MSNBC o identificou recentemente usando foto do terrorista saudita Osama bin Laden -foi engano, e o funcionário foi advertido, disse a emissora. Na blogosfera conservadora, dá-se como certo que o candidato é de uma "célula muçulmana adormecida". E ainda faltam nove meses para as eleições

Biografia ajuda
O fato é que sua biografia peculiar ajuda. Nascido no Havaí, é filho único de um estudante negro do Quênia que, em Honolulu, se apaixonou e casou-se com uma branca nascida no Kansas, ainda hoje um dos Estados menos miscigenados do país, com 91% de brancos.
Seu nome, Barack, é uma derivação em suaíli para "abençoado" em árabe. Hussein, o segundo nome, é o do segundo neto de Maomé, mártir do ramo xiita do islã. O senador define os pais ora como ateus, ora agnósticos. "Num curso de russo, Barack Hussein Obama [o pai] conheceu uma garota americana estranha e tímida, de apenas 18 anos, e eles se apaixonaram", escreve na autobiografia "Dreams From My Father" (sonhos vindos de meu pai).
Ela era Stanley Ann Dunham, que tinha o primeiro nome masculino por obra do pai, que queria um filho homem. "Era uma progressista ao extremo, e ele herdou em grande parte a maneira dela de pensar", disse ao biógrafo Mendell a avó materna de Obama, Madelyn Dunham, hoje com 84 anos. Depois de se divorciar duas vezes, Ann viajaria pelo mundo "estudando outras culturas", segundo a mãe, e restaria à avô a educação de Obama.
Já Barack Hussein Obama pai ganhou o nome do avô paterno do candidato, um médico cristão que se converteu tardiamente ao islamismo e teve três mulheres (é a terceira delas, Sarah, que Obama chama de avó, embora não seja a mãe de seu pai). O casamento de Ann e Obama pai acabou quando o menino tinha dois anos.
No ano seguinte, ela se casou com o indonésio Lolo Soetoro, que levou a família para Jacarta. Ali, de 1966 a 1970, o futuro senador freqüentaria uma escola pública laica que ensinava também os preceitos do islã. A passagem viraria o rumor mais persistente da biografia de Obama, a de que ele foi alfabetizado numa "madrassa" (escola religiosa muçulmana).
Sobre o padrasto, o afilhado diz que era um muçulmano não-praticante que o introduziu "à carne de cachorro (dura), cobra (mais dura ainda) e grilo assado (crocante)". "Como muitos indonésios, Lolo seguia uma facção do islã que dava lugar a fés animistas antigas e ao hinduísmo", escreveu. "Ele me explicou que o homem tira poder do que come: um dia, me prometeu, comeríamos carne de tigre."

Relação com Jesus
Sobre sua própria fé, Barack Obama já afirmou ter "uma relação pessoal com Jesus". Na segunda autobiografia, o senador descreve o dia em que foi batizado por Jeremiah Wright, da Igreja Unida da Trindade de Cristo, protestante, que virou afrocentrista e, para alguns críticos, radical demais depois que o polêmico reverendo assumiu o comando, em 1972.
"Foi por conta desses novos entendimentos -de que o compromisso religioso não requeria de mim a suspensão do pensamento crítico nem o afastamento da luta pela justiça econômica e social- que me senti apto a finalmente atravessar o corredor da igreja um dia e me batizar", escreveu em "A Audácia da Esperança", título de um dos sermões do pastor.
As desinformações tendem a piorar, segundo o biógrafo de Obama. "Até agora, ele se beneficiou mais ou menos da regra não escrita de que, entre democratas, nunca se ataca o pré-candidato negro, sob pena de perder votos", disse Mendell. De fato, ao fazer isso em janeiro, o ex-presidente Bill Clinton pode ter tirado a vitória na Carolina do Sul de sua mulher. "O mesmo não valerá para os republicanos, que já não contam mesmo com esses votos."


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