São Paulo, sexta-feira, 02 de julho de 2004

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IRAQUE SOB TUTELA

Após seis meses preso, ex-ditador mantém altivez, desafia juiz e diz que audiência é parte de campanha de Bush

"Isso tudo é um teatro", diz Saddam na corte

DA REDAÇÃO

Abatido, mas com ar desafiador, o ex-ditador Saddam Hussein reapareceu ontem diante das câmeras pela primeira vez desde sua captura pelos EUA, há mais de seis meses, para ouvir as acusações da corte criada no Iraque para julgá-lo. "Isso tudo é um teatro do Bush, o criminoso, para ajudá-lo em sua campanha", disse, citando o presidente norte-americano, em trecho não gravado do depoimento.
A Casa Branca ignorou as acusações, limitando-se a declarar, por meio do porta-voz Scott McClellan, que "o importante é que Saddam Hussein enfrentará a Justiça do povo iraquiano".
Em quase meia hora de audiência, Saddam manteve-se calmo, questionou a legalidade da corte, das leis que seriam usadas, e se fez de desentendido diante das acusações, sempre mantendo a altivez, conforme relato de jornalistas presentes e imagens gravadas e exibidas em TVs do mundo todo ao fim dos procedimentos.
Suas primeiras palavras diante do juiz, ao ser indagado sobre sua identidade, foram: "Sou Saddam Hussein al Majid, presidente do Iraque". O juiz pediu que o escrivão registrasse "ex-presidente".
O julgamento de Saddam é o primeiro ato de peso do novo governo iraquiano, que assumiu na segunda com o título de "soberano", mas segue sob tutela dos EUA. Entre as sentenças possíveis para o ex-ditador, está a pena de morte, cuja reinstauração (os EUA a suspenderam) está sendo discutida pelo gabinete.
A audiência de ontem serviu apenas para que as queixas contra Saddam fossem apresentadas -na véspera, em uma primeira audiência fechada e não gravada, ele havia se apresentado oficialmente ao tribunal. As acusações remontam a campanhas de assassinato e de extermínio praticadas durante os 35 anos de ditadura do partido Baath, o qual ele liderava e pelo qual se manteve na Presidência entre 1979 e o ano passado.
É possível que haja mudanças até que o ex-ditador seja indiciado oficialmente -o que deve demorar meses-, mas, a princípio, são sete as queixas contra ele: a invasão do Kuait, em 1990; a repressão violenta de um levante xiita e de um levante curdo após a Guerra do Golfo em 1991; uma campanha de "limpeza étnica" contra os curdos que matou dezenas de milhares de pessoas entre 1987 e 1988; o uso de gás tóxico na cidade curda de Halabja (1988); o assassinato de diversos líderes e ativistas políticos; o assassinato premeditado de uma série de líderes religiosos em 1974 e o massacre de cerca de 8.000 membros do clã curdo Barzani em 1983.
Saddam foi levado ao tribunal, montado em um antigo palácio bagdali usado como base militar pelos EUA, sob forte esquema de segurança. Ele segue sob guarda americana em um local ignorado, embora sua custódia legal tenha sido passada aos iraquianos.
O ex-ditador, de 67 anos, chegou ao palácio vestindo um macacão azul de prisioneiro, mas recebeu uma camisa social branca e um terno cinza-chumbo -comprados em uma loja popular- para não ser exibido de maneira humilhante ou pomposa. Por isso as algemas usadas no trajeto até a corte foram retiradas antes de ele entrar no foco das câmeras. Segundo autoridades iraquianas, todo o julgamento, que deve levar anos, será televisionado.
Apesar de parecer cansado, trazendo o rosto mais marcado e bolsas maiores sob os olhos do que nos tempos em que governava o Iraque, a imagem do ex-ditador contrastava com aquela exibida no momento de sua prisão, em dezembro. Em lugar do Saddam desorientado, sujo e desgrenhado sob poder dos EUA, surgiu um homem lúcido e contundente em suas declarações.
Enquanto ouvia o juiz, fazia anotações em um bloquinho amarelo. Às vezes, permanecia silencioso por momentos, Às vezes, tentava interromper. Quando foi confrontado com as acusações, recusou-se a assinar o documento, dizendo que seus advogados não estavam presentes -a equipe de defesa, formada por 20 profissionais de diferentes países nomeados por sua mulher, não viajou ao Iraque.
No fim da audiência, Saddam foi encaminhado a um veículo militar blindado, que o levaria até o helicóptero no qual retornaria à prisão. Depois se seguiram as audiências dos outros 11 acusados -entre eles o ex-vice-premiê Tareq Aziz e o ex-general Ali Hassan al Majid, o "Ali Químico".
Em outros locais do país, a violência prosseguiu com a morte de um marine, a de um soldado de nacionalidade não identificada e a de dois guardas iraquianos em diferentes ataques da insurgência. Na capital, o general George Casey assumiu o lugar de Ricardo Sanchez no comando das tropas americanas no país.


Com agências internacionais

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