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Bases, etanol e Rodada Doha opõem Brasil a EUA de Obama
Em entrevista à Folha, Celso Amorim expõe divergências com Washington
Jamil Bittar-4.dez.2008/Reuters
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O chanceler Celso Amorim, que disse entender a preocupação da Venezuela sobre o uso de bases colombianas pelos americanos
ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
O presidente Barack Obama
mal completou seis meses de
governo, e o Brasil já tem três
frentes de discordância com os
EUA: a intenção de ampliar a
presença militar na Colômbia
sem aviso prévio, o insucesso
da Rodada Doha de negociações comerciais e o recuo de
Washington sobre a revisão de
tarifas para o etanol brasileiro.
Em entrevista à Folha, anteontem, o chanceler Celso
Amorim tomou partido na nova crise entre Colômbia e Venezuela. Citando Millôr Fernandes, para comentar a conduta do presidente venezuelano, Hugo Chávez, ironizou: "O
fato de eu ser paranoico não
significa que não esteja sendo
perseguido".
Sobre o etanol, o ministro
disse que é "um ponto fundamental" nas relações comerciais com os EUA. E afirmou
estar "cético" quanto ao desfecho da Rodada Doha.
FOLHA - Por que tanta preocupação com o uso de bases militares da
Colômbia pelos EUA, se já há o Plano
Colômbia?
AMORIM - É um fato novo. Se
fosse a mesma coisa que já tinham, não precisavam fazer
um novo acordo, não é? A impressão é que as bases servem
para operação de aviões com
raio de ação muito grande. Tudo isso feito assim, sem que tenha havido um processo, sem
nos consultar. A Colômbia é
um país soberano e tem o direito de fazer o que quiser no território dela, mas é uma presença
militar importante na nossa vizinhança. Você pode dizer que
já tinha em Manta [no Equador]. Ok, mas, se mudou, então
há uma coisa nova, e nós queremos conhecer melhor.
FOLHA - O presidente Hugo Chávez
tem razão ao reclamar?
AMORIM - Compreendo as
preocupações da Venezuela.
Diz-se que o alvo principal é o
narcotráfico e ao mesmo tempo há relatórios do Congresso
americano dizendo que a Venezuela estaria sendo conivente,
ou leniente, com o narcotráfico. Daí, põem-se num país que
é vizinho da Venezuela bases
americanas -ou bases colombianas para uso americano, não
importa. Gente! É a história do
Millôr Fernandes: "O fato de eu
ser paranoico não significa que
não esteja sendo perseguido".
FOLHA - Por outro lado, o Brasil não
se preocupa também com a queixa
da Suécia de que armas vendidas à
Venezuela foram parar com as Farc?
AMORIM - Não sei quando ocorreu, nem se ocorreu, e, se ocorreu, se foi antes ou depois do
Chávez. E se foram roubadas?
De qualquer maneira, vamos e
venhamos, é só um episódio.
Muitas armas chegam lá, nas
Farc, como chegam nas favelas
do Rio. Esse episódio é uma coisa desse tamanhinho comparado com as bases militares.
FOLHA - A preocupação se alastra
para a Europa, via Espanha?
AMORIM - Se, de repente, você
tem uma força de fora muito
grande na região... Bem, se as
bases vão ter outra aplicação, e
não está claro se vão ter, é natural que todos os países, inclusive de fora, se preocupem.
FOLHA - Essa ação não vai contra o
discurso de paz, de não ingerência e
desmilitarização de Obama e Hillary
Clinton? É uma surpresa?
AMORIM - Em vez de fazer julgamento de valor, vamos conversar, ouvir explicações e entender melhor. Mas, na região,
é importante ter transparência
e clareza. Isso talvez tenha faltado. Você pode, por exemplo,
ter garantias formais sobre como as bases serão usadas.
FOLHA - Não é contraditório o governo da Colômbia dizer que as Farc
estão aniquiladas e agora justificar a
presença americana justo para combater o que já está aniquilado?
AMORIM - Essa é exatamente
uma das perguntas que se faz.
FOLHA - Pode ser só pretexto?
AMORIM - Eu não estou dizendo que é só um pretexto, mas
você tem todo o direito de fazer
esse raciocínio. O que preocupa
o Brasil é uma presença militar
forte, cujo objetivo e capacidade parecem ir muito além do
que possa ser a necessidade interna da Colômbia.
FOLHA - E a Quarta Frota dos EUA,
no Atlântico Sul?
AMORIM - O paralelo que se pode fazer com as bases é que
ocorreu sem que nós tenhamos
sido avisados previamente. Na
época, eles próprios reconheceram que cometeram um erro
de comunicação. As justificativas deles foram todas muito
inocentes, de ajuda humanitária no Caribe etc.
FOLHA - A Rodada Doha fracassou?
AMORIM - Há uma reunião em
setembro, em Nova Déli, e nem
sabemos ainda se o representante comercial dos EUA irá ou
não. Eles continuam com demandas para os países em desenvolvimento totalmente incompatíveis com o que eles
concederam. Ou seja: o país que
tem a chave para concluir a rodada mais rapidamente são os
EUA, e nós não sentimos ainda
um movimento que nos indique que vá ocorrer. Há um ano
e meio, estávamos no meio de
uma negociação. Agora, não.
Estamos parados. Por isso, estamos procurando outros caminhos. Nunca dissemos que
não queríamos ter um acordo
de livre comércio com a União
Europeia, mas havia e há dificuldades específicas que precisam ser suplantadas. Só que você não pode ficar esperando a
vida toda pela rodada.
FOLHA - Em vez de avançar, os EUA
recuaram no que já havia sido acertado na Rodada Doha depois da vitória dos democratas?
AMORIM - Na realidade, o que
eles têm trazido para as discussões é a mesma posição que os
republicanos já tinham em dezembro, o que nos dificulta
avançar. Trabalhamos intensamente durante seis meses e parecia que era possível, mas os
americanos se enrijeceram. Aí,
o governo Bush terminou, e
não aconteceu nada.
FOLHA - E veio Obama e continuou
sem acontecer nada?
AMORIM - E até sem muita clareza se havia interesse na Rodada. Há um mês, mais ou menos, eles defenderam a manutenção exatamente da posição
que os republicanos haviam colocado. Isso nos levou à conclusão de que não havia condições
de avançar. Querem mais, mais,
mais, mas nem dizem exatamente o quê. Vou ser sincero:
eu gostaria de ser otimista, mas
estou cético neste momento.
Pode concluir? Até pode, mas
levando mais uns dois anos?
FOLHA - Do ponto de vista de Celso
Amorim, isso significa acabar o segundo mandato Lula, oito anos depois, sem Alca, sem Doha, sem acordos bilaterais, sem nenhum avanço
na área de comércio?
AMORIM - Graças a Deus não
fechamos a Alca, porque, senão,
em vez de fechar o ano com um
crescimento de 1%, estaríamos
com o México, com uma recessão de uns 5%, 6%, sei lá. Se você pergunta se eu fico frustrado? Pessoalmente, claro que
sim. O presidente Lula, possivelmente também. Mas, pior
do que não fechar, é fechar um
mau acordo. Os emergentes
têm de ter mais, e os pobrezinhos têm de ter mais ainda,
porque é uma rodada de desenvolvimento. Já no caso de Mercosul-UE, sentimos que eles, os
europeus, estão mais pragmáticos. A crise talvez nos torne
mais realistas, mais flexíveis.
FOLHA - Ou o contrário, mais fechados e mais protecionistas?
AMORIM - Esse risco também
há, mas talvez sejam de alguns
setores dos países, não dos governantes. Só se pode avançar
com uma dose de realismo.
FOLHA - Obama e Thomas Shannon, que foi secretário para o Hemisfério Ocidental de Bush e será o
novo embaixador em Brasília, tinham acenado com a revisão das tarifas contra o etanol brasileiro. Bastou a resistência de um senador de
Iowa para a Casa Branca recuar. Como o Brasil vê isso?
AMORIM - Claro que não achamos bom. Não é positivo para
nós, e até achamos que não seja
positivo também para boa parte da sociedade americana. Vamos torcer para ser uma coisa
episódica, que possa ser revertida lá. Quando você quer aprofundar as relações comerciais
com os EUA, esse é sempre um
dos pontos mais importantes.
Se não houver avanço na área
de etanol, fica difícil onde mais
você possa avançar, pelo menos na área de barreiras tarifárias. Eles sabem disso, aliás.
FOLHA - No caso de Honduras, já
não há sinais também de que o consenso contra o golpe não é mais tão
sólido assim nos EUA?
AMORIM - Tem gente que pensa
de maneira antiga, lá como em
qualquer lugar do mundo. Às
vezes até por laços de amizade.
É preciso dar força ao governo
dos EUA, até para que todos
percebam que não se trata de
uma posição só do Obama, nem
um capricho da Hillary Clinton, mas sim de todo o continente, a favor da volta do presidente Manuel Zelaya.
FOLHA - E o pacote de bondades
para o Paraguai?
AMORIM - Estamos redefinindo
uma relação, que deve ser percebida como verdadeira parceria pelos dois lados. Buscamos
um termo médio. E, afinal, a
verdade é que o Paraguai é de
fato muito pobre e ali vivem
centenas de milhares de brasileiros. Ninguém nem sabe
quantos. Tudo isso é importante para o Brasil.
FOLHA - Quem paga a conta da triplicação do que o Brasil paga pela
cessão de energia e da doação de
uma linha de transmissão de US$
450 milhões para eles consumirem
lá uma energia que hoje a gente
consome cá?
AMORIM - Pelo amor de Deus!
Eles são donos de metade da
usina, de metade da água. Eu
não posso querer ficar com toda a energia. O que o presidente
Lula decidiu é que não será o
consumidor.
FOLHA - Mas só existem três formas: ou o contribuinte, ou o consumidor, ou a entidade consumidor-contribuinte.
AMORIM - Concordo, mas sabe
quanto a cessão representa do
orçamento total de Itaipu? Menos de 10%. A relação com o Paraguai é muito mais complexa
do que isso.
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