São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009

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Bases, etanol e Rodada Doha opõem Brasil a EUA de Obama

Em entrevista à Folha, Celso Amorim expõe divergências com Washington

Jamil Bittar-4.dez.2008/Reuters
O chanceler Celso Amorim, que disse entender a preocupação da Venezuela sobre o uso de bases colombianas pelos americanos

ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

O presidente Barack Obama mal completou seis meses de governo, e o Brasil já tem três frentes de discordância com os EUA: a intenção de ampliar a presença militar na Colômbia sem aviso prévio, o insucesso da Rodada Doha de negociações comerciais e o recuo de Washington sobre a revisão de tarifas para o etanol brasileiro.
Em entrevista à Folha, anteontem, o chanceler Celso Amorim tomou partido na nova crise entre Colômbia e Venezuela. Citando Millôr Fernandes, para comentar a conduta do presidente venezuelano, Hugo Chávez, ironizou: "O fato de eu ser paranoico não significa que não esteja sendo perseguido".
Sobre o etanol, o ministro disse que é "um ponto fundamental" nas relações comerciais com os EUA. E afirmou estar "cético" quanto ao desfecho da Rodada Doha.

 

FOLHA - Por que tanta preocupação com o uso de bases militares da Colômbia pelos EUA, se já há o Plano Colômbia?
AMORIM -
É um fato novo. Se fosse a mesma coisa que já tinham, não precisavam fazer um novo acordo, não é? A impressão é que as bases servem para operação de aviões com raio de ação muito grande. Tudo isso feito assim, sem que tenha havido um processo, sem nos consultar. A Colômbia é um país soberano e tem o direito de fazer o que quiser no território dela, mas é uma presença militar importante na nossa vizinhança. Você pode dizer que já tinha em Manta [no Equador]. Ok, mas, se mudou, então há uma coisa nova, e nós queremos conhecer melhor.

FOLHA - O presidente Hugo Chávez tem razão ao reclamar?
AMORIM -
Compreendo as preocupações da Venezuela. Diz-se que o alvo principal é o narcotráfico e ao mesmo tempo há relatórios do Congresso americano dizendo que a Venezuela estaria sendo conivente, ou leniente, com o narcotráfico. Daí, põem-se num país que é vizinho da Venezuela bases americanas -ou bases colombianas para uso americano, não importa. Gente! É a história do Millôr Fernandes: "O fato de eu ser paranoico não significa que não esteja sendo perseguido".

FOLHA - Por outro lado, o Brasil não se preocupa também com a queixa da Suécia de que armas vendidas à Venezuela foram parar com as Farc?
AMORIM -
Não sei quando ocorreu, nem se ocorreu, e, se ocorreu, se foi antes ou depois do Chávez. E se foram roubadas? De qualquer maneira, vamos e venhamos, é só um episódio.
Muitas armas chegam lá, nas Farc, como chegam nas favelas do Rio. Esse episódio é uma coisa desse tamanhinho comparado com as bases militares.

FOLHA - A preocupação se alastra para a Europa, via Espanha?
AMORIM -
Se, de repente, você tem uma força de fora muito grande na região... Bem, se as bases vão ter outra aplicação, e não está claro se vão ter, é natural que todos os países, inclusive de fora, se preocupem.

FOLHA - Essa ação não vai contra o discurso de paz, de não ingerência e desmilitarização de Obama e Hillary Clinton? É uma surpresa?
AMORIM -
Em vez de fazer julgamento de valor, vamos conversar, ouvir explicações e entender melhor. Mas, na região, é importante ter transparência e clareza. Isso talvez tenha faltado. Você pode, por exemplo, ter garantias formais sobre como as bases serão usadas.

FOLHA - Não é contraditório o governo da Colômbia dizer que as Farc estão aniquiladas e agora justificar a presença americana justo para combater o que já está aniquilado?
AMORIM -
Essa é exatamente uma das perguntas que se faz.

FOLHA - Pode ser só pretexto?
AMORIM -
Eu não estou dizendo que é só um pretexto, mas você tem todo o direito de fazer esse raciocínio. O que preocupa o Brasil é uma presença militar forte, cujo objetivo e capacidade parecem ir muito além do que possa ser a necessidade interna da Colômbia.

FOLHA - E a Quarta Frota dos EUA, no Atlântico Sul?
AMORIM -
O paralelo que se pode fazer com as bases é que ocorreu sem que nós tenhamos sido avisados previamente. Na época, eles próprios reconheceram que cometeram um erro de comunicação. As justificativas deles foram todas muito inocentes, de ajuda humanitária no Caribe etc.

FOLHA - A Rodada Doha fracassou?
AMORIM -
Há uma reunião em setembro, em Nova Déli, e nem sabemos ainda se o representante comercial dos EUA irá ou não. Eles continuam com demandas para os países em desenvolvimento totalmente incompatíveis com o que eles concederam. Ou seja: o país que tem a chave para concluir a rodada mais rapidamente são os EUA, e nós não sentimos ainda um movimento que nos indique que vá ocorrer. Há um ano e meio, estávamos no meio de uma negociação. Agora, não.
Estamos parados. Por isso, estamos procurando outros caminhos. Nunca dissemos que não queríamos ter um acordo de livre comércio com a União Europeia, mas havia e há dificuldades específicas que precisam ser suplantadas. Só que você não pode ficar esperando a vida toda pela rodada.

FOLHA - Em vez de avançar, os EUA recuaram no que já havia sido acertado na Rodada Doha depois da vitória dos democratas?
AMORIM -
Na realidade, o que eles têm trazido para as discussões é a mesma posição que os republicanos já tinham em dezembro, o que nos dificulta avançar. Trabalhamos intensamente durante seis meses e parecia que era possível, mas os americanos se enrijeceram. Aí, o governo Bush terminou, e não aconteceu nada.

FOLHA - E veio Obama e continuou sem acontecer nada?
AMORIM -
E até sem muita clareza se havia interesse na Rodada. Há um mês, mais ou menos, eles defenderam a manutenção exatamente da posição que os republicanos haviam colocado. Isso nos levou à conclusão de que não havia condições de avançar. Querem mais, mais, mais, mas nem dizem exatamente o quê. Vou ser sincero: eu gostaria de ser otimista, mas estou cético neste momento.
Pode concluir? Até pode, mas levando mais uns dois anos?

FOLHA - Do ponto de vista de Celso Amorim, isso significa acabar o segundo mandato Lula, oito anos depois, sem Alca, sem Doha, sem acordos bilaterais, sem nenhum avanço na área de comércio?
AMORIM -
Graças a Deus não fechamos a Alca, porque, senão, em vez de fechar o ano com um crescimento de 1%, estaríamos com o México, com uma recessão de uns 5%, 6%, sei lá. Se você pergunta se eu fico frustrado? Pessoalmente, claro que sim. O presidente Lula, possivelmente também. Mas, pior do que não fechar, é fechar um mau acordo. Os emergentes têm de ter mais, e os pobrezinhos têm de ter mais ainda, porque é uma rodada de desenvolvimento. Já no caso de Mercosul-UE, sentimos que eles, os europeus, estão mais pragmáticos. A crise talvez nos torne mais realistas, mais flexíveis.

FOLHA - Ou o contrário, mais fechados e mais protecionistas?
AMORIM -
Esse risco também há, mas talvez sejam de alguns setores dos países, não dos governantes. Só se pode avançar com uma dose de realismo.

FOLHA - Obama e Thomas Shannon, que foi secretário para o Hemisfério Ocidental de Bush e será o novo embaixador em Brasília, tinham acenado com a revisão das tarifas contra o etanol brasileiro. Bastou a resistência de um senador de Iowa para a Casa Branca recuar. Como o Brasil vê isso?
AMORIM -
Claro que não achamos bom. Não é positivo para nós, e até achamos que não seja positivo também para boa parte da sociedade americana. Vamos torcer para ser uma coisa episódica, que possa ser revertida lá. Quando você quer aprofundar as relações comerciais com os EUA, esse é sempre um dos pontos mais importantes.
Se não houver avanço na área de etanol, fica difícil onde mais você possa avançar, pelo menos na área de barreiras tarifárias. Eles sabem disso, aliás.

FOLHA - No caso de Honduras, já não há sinais também de que o consenso contra o golpe não é mais tão sólido assim nos EUA?
AMORIM -
Tem gente que pensa de maneira antiga, lá como em qualquer lugar do mundo. Às vezes até por laços de amizade. É preciso dar força ao governo dos EUA, até para que todos percebam que não se trata de uma posição só do Obama, nem um capricho da Hillary Clinton, mas sim de todo o continente, a favor da volta do presidente Manuel Zelaya.

FOLHA - E o pacote de bondades para o Paraguai?
AMORIM -
Estamos redefinindo uma relação, que deve ser percebida como verdadeira parceria pelos dois lados. Buscamos um termo médio. E, afinal, a verdade é que o Paraguai é de fato muito pobre e ali vivem centenas de milhares de brasileiros. Ninguém nem sabe quantos. Tudo isso é importante para o Brasil.

FOLHA - Quem paga a conta da triplicação do que o Brasil paga pela cessão de energia e da doação de uma linha de transmissão de US$ 450 milhões para eles consumirem lá uma energia que hoje a gente consome cá?
AMORIM -
Pelo amor de Deus! Eles são donos de metade da usina, de metade da água. Eu não posso querer ficar com toda a energia. O que o presidente Lula decidiu é que não será o consumidor.

FOLHA - Mas só existem três formas: ou o contribuinte, ou o consumidor, ou a entidade consumidor-contribuinte.
AMORIM -
Concordo, mas sabe quanto a cessão representa do orçamento total de Itaipu? Menos de 10%. A relação com o Paraguai é muito mais complexa do que isso.


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