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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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REVOLTA NOS ANDES

Para analistas, no entanto, a possibilidade de um forte movimento indígena transnacional é remota

Bolívia coloca os índios no mapa do poder

FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO

As impressionantes imagens das manifestações indígenas na Bolívia, no mês passado, suscitaram em países da América Latina a expectativa de que os índios finalmente estivessem suficientemente organizados e fortes para incomodar -e eventualmente conquistar- o poder, alterando um status de subalternidade que já dura cinco séculos.
"Sei que, se vocês acharem que sou um mau presidente, não poderei prosseguir", disse na semana passada o novo presidente boliviano, o branco Carlos Mesa, em discurso a 5.000 índios em La Paz, após a queda de Gonzalo Sánchez de Lozada. Liderada pelo radical Felipe Quispe, quase toda a audiência era aimará, etnia com grande presença no altiplano boliviano e, em menor escala, no Peru e Chile. "Se eu me servir de vocês, vocês me darão um chute, e será bem dado", disse Mesa.
No Peru, pesquisa mostra que 70,5% dos moradores de Lima acham que um movimento semelhante ao boliviano possa ocorrer no país e 68% disseram apoiar os protestos na Bolívia.
Apesar de o Peru ter escolhido pela primeira vez um presidente de origem indígena, Alejandro Toledo sofre com a baixa aprovação -cerca de 20%, segundo a mesma pesquisa, realizada pela Universidade de Lima.
No Equador, onde, em 2000, o movimento indígena e o Exército forçaram a saída do ex-presidente Jamil Mahuad, líderes preparam manifestações contra o também impopular presidente Lucio Gutiérrez, um ex-aliado. Nesta semana, índios protestaram contra a multinacional do petróleo ChevronTexaco, acusada de poluir a Amazônia equatoriana.
"A Bolívia é um exemplo para o governo de nossos países e dos EUA. E aqui no Equador digo claramente ao governo Gutiérrez: cuidado com o movimento indígena, cuidado com os povos do Equador", disse à Folha o quéchua Gilberto Talahua, presidente do Partido Pachacuti. Sua etnia tem forte presença nas regiões andinas do Equador, do Peru e da Bolívia. No Congresso, o partido tem 11 dos 100 deputados.

Efeito Quispe
Parte dessa expectativa é gerada pela polêmica liderança de Quispe, cujo discurso muitas vezes é separatista, inclusive com a defesa de uma revolução armada.
"O que ocorreu aqui na chamada Bolívia é um ensaio para nos organizarmos e nos prepararmos. É necessário internacionalizar o indigenismo", disse à Folha Quispe, 61, desde o início um dos principais líderes dos protestos. "Por isso estamos nesse trabalho de articular organizações internacionais, desde o Alasca até a Patagônia, avançando pela Amazônia brasileira e peruana".
Para Quispe, é necessário trabalhar tanto na frente democrática como numa proposta revolucionária. "Temos o braço democrático e o ilegal, que ainda não está nas leis republicanas. Temos táticas e técnicas indígenas, que vêm de gerações", disse. Ex-guerrilheiro nos anos 80, hoje é deputado federal pelo Movimento Indígena Pachacuti e preside a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia.

Internacional indígena?
Para o presidente da mais importante organização indígena da América do Sul, o índio brasileiro Sebastião Manchineri, 33, os protestos bolivianos eram sobretudo nacionais, principalmente por meio da oposição à exportação do gás via Chile, país que em 1879 tirou o acesso da Bolívia ao mar.
"Foi um movimento boliviano. Conheço Quispe e suas opiniões. Ele tem mais é que se afirmar como aimará, ele pertence ao povo aimará. Agora, eles estão defendendo a dignidade, a soberania e os recursos de um país", disse Manchineri, em entrevista por telefone de Quito, onde mora. Originário do Acre, o seu povo, da etnia yine, está espalhado por três países: Brasil, Bolívia e Peru.
Desde 2001, Manchineri preside a Coica (Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica), que representa 400 povos indígenas de Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela, somando cerca de 1,5 milhão de pessoas.
"O que tem de novo na Bolívia é que eles defenderam um país, diferente do Equador, onde o tema eram os povos indígenas. Na Bolívia, utilizaram o discurso do gás para a defesa da soberania do país. Isso é extremamente novo."
Para Manchineri, "Quispe não tem um discurso separatista, mas de afirmação de um povo". "Os manifestantes querem que o Estado se adapte à realidade boliviana, constituída de várias culturas."
Manchineri acredita que o movimento indígena da latino-americano não queira criar Estados independentes. "O principal é conseguir o reconhecimento dos povos em cada um dos países. Independentemente se o Estado aceita ou não, nós existimos em diferentes partes e países."

Fragilidade interna
Para o cientista político boliviano radicado nos EUA Eduardo Gamarra, 46, o movimento indígena boliviano representa uma posição avançada em relação a outros países, mas Quispe não tem potencial para unificar sequer os índios bolivianos, que representam cerca de 60% da população (25% são aimarás).
"O personagem principal do movimento indígena é muito fraco. O movimento indígena tem divisões muito pronunciadas, sobretudo entre o altiplano e a zona mais baixa, como Cochabamba e Santa Cruz. Muita gente pensa que o movimento indígena é nacional. Não é. Quispe vai ser muito importante em mobilizações temporárias, mas ele não é o futuro líder indígena boliviano", disse Gamarra, professor da Universidade Internacional da Flórida.
Gamarra acredita que Evo Morales, também aimará, tenha mais chance de se tornar uma liderança nacional, inclusive com presença fora da Bolívia, mas como um líder antiglobalização.
"Morales tem maior potencial, mas não é propriamente um líder indígena, é um político de origem sindical, que tem construído um movimento nacional. Ele está dentro das correntes internacionais antiglobalização, anti-Alca. Nesse sentido é um líder moderno", disse Gamarra, que inclui o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, nessa tendência.
Apesar disso, Gamarra vê um movimento ideologicamente forte. "Na Bolívia, é um movimento que já não é possível cooptar, que não quer um ou dois ministérios."
Para o antropólogo espanhol Xavier Albó, 69, radicado na Bolívia, é pouco provável que o movimento boliviano tenha uma atuação fora do país, já que não existe sequer uma organização transnacional de índios andinos. Segundo ele, a influência se dá por conta da troca de informações na região. "Na Bolívia, por exemplo, surgiu um movimento de sem-terra, que não tem relação orgânica com os sem-terra brasileiros, mas há o efeito da repetição."



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