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Tensão no Congo reaviva espectro de Ruanda
Eclosão do atual conflito foi precedida pela chegada de levas de refugiados, piora da pobreza e violência étnica intermitente
Epicentro é Goma, cidade miserável no leste cercada por campos de deslocados; situação ecoa traumas do genocídio no país vizinho
FÁBIO ZANINI
EM GOMA
(REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO)
Muhindo, 28, tem marcas de
queimadura pelo corpo; Joseph, 32, teve o irmão de 14
anos morto a machadadas; Hélène, 45, foi vítima de estupros.
No leste da República Democrática do Congo, cenas semelhantes às do genocídio da vizinha Ruanda, em 1994, continuam nos dias hoje.
Na última semana, um confronto de quase 15 anos, com alguns intervalos de calma, reacendeu-se de forma especialmente intensa numa região rica em minérios, disputada por
vários grupos armados.
Dessa vez, o estopim foi o
avanço do general rebelde congolês Laurent Nkunda, que
controla 5.000 homens, sobre
Goma, uma cidade miserável, já
congestionada com refugiados
de outras ondas de violência e
semidestruída por lava vulcânica. É lá que se baseiam a ONU e
várias ONGs.
Nkunda diz perseguir remanescentes da etnia hutu que se
refugiaram na mata congolesa
após comandarem o massacre
de quase 1 milhão de pessoas,
grande parte da minoria tutsi,
durante o genocídio de Ruanda.
Seu discurso é o de proteger os
tutsi de mais uma matança -e
suspeita-se que ele receba
apoio do governo tutsi ruandês.
Nem o Exército do Congo,
uma força desmoralizada e corrupta, nem os 17 mil soldados
da ONU na região têm conseguido deter o avanço de Nkunda. Na semana passada, ele,
unilateralmente, declarou um
cessar-fogo às portas de Goma,
definido como uma "chantagem política" pela ONU, provocando pânico na cidade.
O Alto Comissariado das Nações Unidas (Acnur) estima em
20 mil o número de refugiados
internos procurando abrigo
numa cidade que já abriga precariamente 100 mil pessoas.
"A situação é crítica. Nosso
pessoal na região está impossibilitado de visitar os campos de
refugiados para ajudar as pessoas", disse por telefone o vice-diretor do Acnur no Congo, o
moçambicano Antônio José
Canhandula.
Revolta latente
O último intervalo de paz já
durava desde janeiro, quando
foi assinada uma trégua entre
as facções armadas. No final de
maio, a Folha passou três dias
em Goma e percebeu uma cidade sem violência, mas em ponto de ebulição. Uma dezena de
campos de refugiados, muitos
abrigando etnias rivais, rodeiam uma cidade de 600 mil
habitantes que tem apenas
uma avenida asfaltada, um punhado de lojas, praticamente
nenhum serviço de saúde e desemprego de 90%.
Um destes campos é Mugunga 2, a 12 km do centro de Goma. São 9.000 pessoas morando em cabanas de madeira e
palha, cobertas com a característica lona branca do Acnur.
O chão é de lava solidificada,
herança das erupções do monte Nyiragongo, presença ameaçadora sobre a região. Por isso,
caminhar é difícil, e o espaço
para cultivo é limitado. Pequenas hortas de mandioca e feijão
se espremem entre as cabanas.
Ao meio-dia, pequenas fogueiras começam a aparecer.
Numa delas, uma mulher destampa a panela para mostrar
uma pasta verde. É uma espécie de purê de mandioca, que,
acompanhado de banana e farinha, será o almoço dos filhos.
Carne ou frango na refeição
são raros. Crianças de menos
de dez anos dobram o corpo
para carregar nas costas vasilhames alaranjados com água.
"Temos problemas de malária,
infecção respiratória, doenças
sexualmente transmissíveis e,
no caso das crianças, má nutrição", diz Felix Mirindi, enfermeiro do posto de saúde local.
Há um médico que passa duas
vezes por semana.
Os refugiados de Mugunga 2
formam um panorama abrangente dos grupos que disputam
o leste do Congo.
Ismail, 25, fugiu das FDLR
(Forças Democráticas de Libertação de Ruanda), sigla que
identifica os hutus ruandeses
que escaparam após o genocídio, muitos procurados por
participação ativa na matança.
Segundo a ONU, esse grupo
se financia controlando o acesso a minas de ouro e cobalto.
Calcula-se que tenha de 6.000
a 20 mil homens armados, um
fator permanente de ameaça
para o governo de Ruanda, que,
por isso, estaria ajudando o general Nkunda.
"A FDLR invadiu minhas
terras. Tive que fugir para não
ser morto", diz Ismail, que caminhou os 300 km de sua cidade, Walikale, até Goma.
Nkunda, que teve um aliado
indiciado pelo Tribunal Penal
Internacional no início deste
ano, também tem sua cota de
atrocidades. "Eles castram os
homens e estupram as mulheres", diz um morador do campo, exibindo marca de uma machadada que levou no pescoço.
Há ainda dezenas de grupo
locais de autodefesa que surgiram também para resistir aos
hutus, chamados genericamente de "mai-mai", mas que
acabaram descambando para o
banditismo. Seu tamanho real
é desconhecido.
A ONU e o Exército do Congo estabeleceram como prioridade repatriar os hutus para
Ruanda -por convencimento
se possível, pela força das armas caso não seja. Na prática,
não têm conseguido sucessos
militares e tiveram de recuar
de suas posições frente ao
avanço dos rebeldes.
Enquanto o conflito se prolonga, os campos vão se tornando permanentes. Em Mugunga 2, já há uma escola primária, uma feira livre e um
hospital. Na praça central, uma
quadra de vôlei improvisada.
O que começou há um ano e
meio como um pequeno conjunto de cabanas hoje é uma
comunidade organizada, em
que cada grupo de 50 forma um
quarteirão, com seu "prefeito".
"Só sairemos daqui quando o
governo garantir a nossa segurança", diz um morador.
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