São Paulo, quarta-feira, 02 de novembro de 2011

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Olho por olho

Na Albânia, mais de 140 famílias vivem sob ameaça de vingança; prática é autorizada pelo código de conduta conhecido como Kanun

JERONIMO GIORGI
ANGELO ATTANASIO

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NA ALBÂNIA

"Durante 35 anos fui livre, e agora vivo encarcerado", afirma Bardhyl, um dos 26 homens da família Kola que há mais de um ano não saem de casa, ameaçados pela vingança de sangue.
Na Albânia, sobretudo na montanhosa região norte, a mais pobre do país, assassinatos por vingança ainda são comuns. Trata-se de um direito historicamente regulamentado pelo Kanun -código de conduta transmitido oralmente há mais de 500 anos e que hoje já não é cumprido ao pé da letra.
O Kanun de Lek Dukagjini, o mais difundido entre os cinco existentes, compõe-se de 12 livros que regulamentavam a vida albanesa -da família e trabalho às questões de honra. Durante o regime comunista, o código foi proibido. Com a democracia e a catástrofe econômica de 1996, que causou guerra civil e um longo vácuo de poder, a vingança ressuscitou.
"O Kanun foi mantido na geladeira durante o comunismo, mas o povo não o esqueceu", afirma Luigi Mila, secretário da Associação Justiça e Paz, que em 2010 publicou um estudo que trazia entre suas constatações o fato de que 80% da população albanesa não confia na Justiça.
"A desonra não pode ser vingada por meio de uma indenização, mas sim pelo derramamento de sangue ou por um perdão generoso", dispõe o oitavo livro do Kanun.
O código estabelece três casos nos quais uma família tem direito a se vingar: se um parente for assassinado, se a mulher de alguém for violentada ou se um amigo for assassinado na casa de alguém.
No caso dos Kola, um primo de Bardhyl -com a cumplicidade de três outros familiares, entre os quais seu irmão- assassinou um jovem que o criticava por a família não ter vingado o assassinato de um Kola mais de 15 anos antes. Com a morte do jovem, todos os Kola, ou seja, o pai de Bardhyl, seus seis irmãos e todos os seus descendentes, estão sob ameaça.
Segundo o estudo de Mila, na Albânia existem mais de 140 famílias vivendo sob esse tipo de ameaça, e o motivo é que, de acordo com o Kanun, "a casa do albanês pertence a Deus e ao hóspede", e vinganças não podem ser realizadas em seu interior.
O número ainda assim não reflete a realidade, porque a perda das tradições faz com que muitas famílias ameaçadas optem por não viver trancafiadas. "A lei da vingança de sangue se aplica a todos os varões da família do homicida, mesmo que ainda usem fraldas", dispõe outro artigo do Kanun, mas o medo afeta a todos. Faz um ano que os Kola permanecem encerrados, e não voltarão a viver em liberdade a menos que sejam perdoados ou vingados.
Enquanto isso, Bardhyl e seu filho Ermal, 2, não podem sair de casa. Além disso, Yasmil, 6, a outra filha de Bardhyl, "tampouco queria sair ao jardim, nos 10 primeiros meses, e ficava chorando por trás da cortina", diz Bardhyl, com tristeza.

RECONCILIAÇÃO
"O mediador de sangue é quem se esforça por induzir a família de um assassinado a se reconciliar com a do assassino", dispõe o artigo 134 do Kanun. O envio de um mediador é um direito, e recebê-lo é um dever.
Perdido entre as montanhas do norte da Albânia vive Sokol Dalja, um bajraktari, ou mediador, que, em seus 78 anos de vida, reconciliou cem famílias. "Quando caiu a ditadura, comecei a reconciliar; era necessário, dado o aumento no número de casos de vingança", ele afirma, tirando de uma gaveta em um velho móvel de madeira os certificados dos casos que mediou.
Sokol é um bajraktari porque herdou a profissão do pai, assassinado quando ele tinha apenas dois anos. Aos 17, Sokol promoveu a reconciliação entre sua família e a dos assassinos de seu pai.
"Quando você interioriza a dor, é capaz de reconhecer a dor alheia. Quem não sofre não é capaz de julgar".
Para se aproximar de uma família, "é preciso chegar aos poucos, conhecê-la bem, fazer mil visitas", disse Sokol, enquanto Alexander Kola, também mediador na cidade de Shkoder, afirma que "não há prazo definido; podem se passar seis meses como seis anos". De fato, em 1996 ele promoveu a reconciliação de duas famílias que eram inimigas havia 83 anos.
Mas, para que a reconciliação seja válida, é preciso realizar o "banquete do sangue", na casa do chefe de família do assassino, com a participação de mediadores, parentes e amigos.
O ritual exige que o bajraktari pique o dedo médio dos dois chefes de família, lance um punhado de açúcar sobre as gotas de sangue e veja que os dois envolvidos bebam o sangue um do outro.
Mesmo assim, é difícil promover uma reconciliação, ainda que, como dispõe o artigo 122 do Kanun, "conceder trégua seja um dever digno dos homens fortes".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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