São Paulo, quinta-feira, 03 de janeiro de 2008

Próximo Texto | Índice

Ato da oposição desafia governo no Quênia

Candidato derrotado ignora proibição oficial e lidera protesto hoje; as mortes em confrontos étnicos já passam de 300

Sociedade teme que a manifestação desencadeie carnificina ainda maior; principal favela de Nairóbi está dividida por etnias

Karel Prinsloo/Associated Press
Opositores levantam porretes e facões ao lado de cartaz do candidato da oposição Raila Odinga durante protesto na favela de Mathare, a maior de Nairóbi; a área da favela foi dividida por etnias

ANA FLOR
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM NAIRÓBI

Em meio à onda de violência que já causou a morte de 300 pessoas, o Quênia deve viver hoje o dia mais tenso desde o início da crise causada pelas denúncias de irregularidades nas eleições presidenciais da semana passada. O principal partido de oposição, o Movimento Democrático Laranja (ODM, em inglês), marcou para hoje uma manifestação no centro de Nairóbi em que espera reunir um milhão de pessoas.
O motivo do protesto é a existência de denúncias de fraude na eleição presidencial do último dia 27, na qual o atual presidente, Mwai Kibaki, 76, foi reeleito. Raila Odinga, 62, candidato à Presidência pelo ODM, ficou em segundo por uma margem pequena de votos.
Ontem, o governo anunciou que manifestações públicas estão banidas, e qualquer protesto será reprimido pela polícia. O temor de diversos setores da sociedade é de que a manifestação dê lugar a uma carnificina sem precedentes no país.
Desde a divulgação do resultado das eleições, grupos armados com facas e paus têm atacado estabelecimentos comerciais e casas de pessoas do grupo étnico kikuyu, do qual Kibaki faz parte. Já são mais de cem mil desabrigados no país. A acusação do governo é de que os ataques têm partido dos luos, grupo étnico de Odinga.
Um grupo que se intitulou "Cidadãos Comprometidos em Prol da Paz" iniciou uma campanha ontem pedindo tanto ao presidente quanto a Odinga que aceitem negociar.

População dividida
"Muita gente vai morrer, mas isso é necessário para que este país mude", diz Chris Otieno, um guarda noturno luo que se diz indignado com o resultado das eleições. "Levei quatro horas na fila para votar. Para quê? Para ver um presidente tomar posse à noite, quase escondido da população?", pergunta.
Otieno, que originalmente é de Kisumu, reduto luo onde episódios graves de violência têm ocorrido, acha que o resultado destas eleições irá consolidar o isolamento dos kikuyus no Quênia. "Não apenas os luos, mas todas as outras tribos se sentem passadas para trás pelo atual governo kikuyu", diz.
Mesmo assim, Otieno, que mora em uma área pobre de Nairóbi, não pensa que seja justo que seus vizinhos kikuyus paguem pelas irregularidades eleitorais. "Tenho vizinhos kikuyus, mas eles pessoalmente não me fizeram nenhum mal."
Em outras áreas de Nairóbi, entretanto, a revolta pelos resultados tem atingido diretamente os kikuyus. Na favela de Mathare, onde este grupo étnico representa pelo menos um quarto da população, estabelecimentos comerciais kikuyus foram destruídos. Casas de kikuyus, mesmo as alugadas para residentes de outros grupos étnicos, foram queimadas.
Desde domingo, uma divisão geográfica entre quatro setores, representando as áreas em que vivem os quatro principais grupos tribais de Mathare, foi estabelecida pelos moradores. Para entrar em cada um dos setores, as pessoas precisam mostrar a identidade -a etnia é identificada pelo sobrenome e a cidade de origem- e provar de que grupo étnico provêm.
"Em Mathare 2, onde moram os luyas, um kikuyu não entra. Assim como eu não posso mais entrar em Mathare 1, onde eles vivem", explica Andrew Kurundu, 33 anos, um luya. "Kambas, luos, luyas e kalenjis, todos estão com raiva dos kikuyus."

Faltam gasolina e comida
O enfrentamento entre grupos étnicos trouxe efeitos negativos imediatos para a maioria dos quenianos. O fechamento de estradas por causa da violência torna difícil o escoamento de alimentos pelo país. A destruição de estabelecimentos comerciais fez com que os moradores tenham que comprar alimentos longe de casa, a preços mais altos.
"Ficou mais caro ir ao trabalho porque existem poucos matatus [vans de transporte coletivo] nas ruas. Muita gente precisa sair mais cedo do trabalho ou nem vai trabalhar. Por causa disso e pela falta de carne, a loja ficou fechada ontem", diz Mary Makinda, que trabalha em um açougue em um bairro nobre.
O taxista Felix Mugimu reclamava ontem da falta de combustível. Mugimu, um kikuyu, afirma que a violência está sendo insuflada pelos políticos da oposição. "As pessoas que protestam não aceitam terem perdido as eleições e querem ganhar na força", diz o taxista.
Para o jornalista Maina Karengue, a violência pós-eleitoral está sendo lamentável para a imagem do país. "Voltamos 20 anos no tempo, para antes do multipartidarismo", avalia. "Como o Quênia espera continuar tendo um papel relevante nas negociações regionais se não consegue garantir a lisura de sua própria democracia?"
O observador politico Evans Monari ressalta a ineficiência das instituições que deveriam garantir a neutralidade do Estado. "Onde está o procurador-geral, que deveria ser o primeiro a dizer que houve irregularidades? Ele estava ajudando o presidente a tomar posse menos de uma hora após a divulgação dos resultados."


Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.