São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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A MORTE DO PAPA

"El Silencio", de Horacio Verbitsky, acusa d. Jorge Bergoglio de ter colaborado com a prisão de dois padres durante a ditadura

Livro revela "dupla face" de papável argentino

SILVANA ARANTES
DE BUENOS AIRES

O cardeal primaz da Argentina, Jorge Bergoglio, 68, é apontado como um dos possíveis sucessores do papa João Paulo 2º.
O prestígio do cardeal argentino no Vaticano cresce desde 2001, ano em que ele foi o relator do Sínodo dos Bispos.
Na Argentina, porém, sua reputação está sendo severamente questionada, a partir do lançamento de um livro que esmiúça as relações da Igreja Católica com a última ditadura militar no país (1976-83).
"El Silencio" (Editorial Sudamericana), de Horacio Verbitsky, acusa Bergoglio de ter contribuído para a detenção, em 1976, pelas Forças Armadas, de dois sacerdotes que trabalhavam sob seu comando na Companhia de Jesus, Francisco Jalics e Orlando Yorio.
A acusação não é inédita. Rumores sobre uma suposta colaboração de Bergoglio com a ditadura já haviam sido ventilados na Argentina por críticos do perfil conservador do cardeal.
É a primeira vez, no entanto, que se publica um registro oficial da atuação de Bergoglio no episódio. Verbitsky obteve nos arquivos do Ministério das Relações Exteriores e Culto da Argentina um documento de 1979 em que o então diretor de Culto Católico do órgão, Anselmo Orcoyen, afirma ter sido informado por Bergoglio das "suspeitas de contato com guerrilheiros" e dos "conflitos de obediência" envolvendo o sacerdote de origem húngara Jalics.
Bergoglio teria feito esses comentários oralmente ao entregar por escrito um pedido para renovação do passaporte argentino de Jalics, que, assim como Yorio, foi libertado em 1976. O pedido de renovação do passaporte foi negado com base nos antecedentes do religioso informados verbalmente. Verbitsky narrou esses fatos num capítulo de "El Silencio" chamado de "As Duas Faces do Cardeal".
"Para mim, esses documentos não deixam lugar a dúvidas. Ele [Bergoglio] vai à Chancelaria, pede um trâmite em favor do sacerdote, mas, por baixo do pano, diz para não o concederem porque se trata de um subversivo", disse Verbitsky à Folha.
Bergoglio aceitou falar com o escritor durante a preparação do livro. O cardeal negou que tenha colaborado com a ditadura e disse que, ao contrário, agira para tentar salvar os sacerdotes enquanto estavam presos na Esma, a Escola de Mecânica da Armada, local de extermínio do regime militar.
No momento em que se encontraram, o autor do livro ainda não havia localizado o documento com o qual acredita haver comprovado o duplo comportamento de Bergoglio nos anos da ditadura. "Depois, tentei falar com ele novamente, mas ele nunca me atendeu. Não sei se ficou sabendo, por suas fontes, que eu havia localizado o texto", diz Verbitsky.
A Folha tentou ouvir Bergoglio, mas foi informada, na sede do arcebispado argentino, que o cardeal "não fala com a imprensa".
Em declarações a Verbitsky, o padre Yorio, que morreu em 2000, afirma haver sido traído por Bergoglio. Segundo o religioso, o cardeal não apenas teria negado esforços para libertá-los mas também seria o responsável por sua perseguição, já que decidiu afastá-los da paróquia em que trabalhavam quando aderiram à teologia da libertação. Com o gesto, Bergoglio teria assinalado os sacerdotes como alvos do regime militar, acreditava Yorio.
Quando procurado pelo autor, Jalics, que hoje vive na Alemanha, preferiu não retomar o assunto. "Já passou um quarto de século [desde a detenção]. Estou muito longe de tudo isso. Por que remexer em memórias dolorosas?", foi a resposta do padre.
Embora seja avesso ao contato com a imprensa e à exibição pública -é um hábito do cardeal ocultar sob uma capa de cor neutra os imponentes trajes sacerdotais quando anda pelas ruas-, Bergoglio se envolveu numa grande polêmica midiática no final do ano passado.
O cardeal classificou de "blasfema" e pediu a censura da retrospectiva em que o artista plástico Leon Ferrari, 84, exibia obras críticas à Igreja Católica, no Centro Cultural Recoleta, ao lado da Paróquia de Pilar.
Na onda de indignação incentivada por Bergoglio, fiéis fervorosos invadiram a mostra e destruíram parte das obras aos gritos de "Viva Cristo Rei". Ferrari reuniu os estilhaços das peças atacadas, manteve-as expostas e as renomeou. Adquiriram o título: "Obrigado, cardeal Bergoglio".
Ferrari é convidado de Verbitsky para o debate em torno de sua obra na Feira do Livro, que ocorre neste mês em Buenos Aires. Lançado no mês passado, "El Silencio" esgotou a primeira edição, de 12 mil exemplares. "Que o livro saia no momento em que ele é considerado papável é pura casualidade", diz Verbitsky.


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