São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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Novo-rico chinês é alvo de campanha contra a ostentação

Governo teme efeito da desigualdade, que produz focos de contestação, mas hesita em aumentar seus gastos sociais

"Compra" do segundo filho e "obsessão" por barbatana de tubarão estão entre as práticas criticadas na imprensa oficial chinesa

Claudia Antunes/Folha Imagem
Trânsito no fim de tarde em Pequim; poluição e poeira da Mongólia escondem horizonte


CLAUDIA ANTUNES
EM PEQUIM

A glória de enriquecer continua sendo a meta de milhões de chineses, mas a ostentação de riqueza merece condenação. Ao viajante ainda atordoado com os neons e os arranha-céus de Xangai, os dirigentes comunistas repetem que "ainda somos um país em desenvolvimento", enquanto colunas e reportagens dos jornais oficiais investem contra hábitos dos novos-ricos, como a "compra" (via pagamento de multa) do segundo ou do terceiro filho.
A campanha é um eco do slogan da "sociedade harmoniosa" lançado há dois anos pelo atual presidente, Hu Jintao, por sua vez conseqüência do medo de que os desequilíbrios sociais e regionais acentuados pela expansão econômica dos últimos anos ameacem o regime.
As diferenças são visíveis para quem deixa a costeira Xangai, renda per capita anual de US$ 7.000, e desembarca em Xian, no centro do país, primeira capital da China unificada (século 3 a.C.) e terra dos guerreiros de terracota -renda de US$ 1.150. A viagem de avião de duas horas leva de uma Nova York asiática para um Rio de Janeiro, com os contrastes familiares aos brasileiros.

"Paradise"
Em Xian, na Província de Shaanxi, o Sheraton ergue 18 andares lotados de turistas em uma avenida onde sobrados antigos têm janelas com limo acumulado e paredes desbotadas. A 500 metros do hotel, um balcão sobre a calçada serve chá verde engarrafado a chineses que se debruçam sobre um jogo antigo de tabuleiro.
A meia hora de carro dali, em um subúrbio recém-remodelado, guindastes se movimentam na construção das "townhouses", com dois andares e sótão, do novo condomínio "Farong Paradise" (em inglês mesmo).
Os dentes dos chineses são brancos em Xangai, em Pequim. Manchados no interior, como os dos moradores de uma vila rural em Shaanxi. A agricultora Liang Hailing, 47 anos, já tinha dois filhos quando se mudou da caverna escavada na terra em que morava para uma casa no mesmo terreno, em 1987. Diz que ganha, com a ordenha de sete vacas, 30 mil yuans por ano (US$ 3.800): ou exagera ou os números oficiais estão subestimados.
Liang tem a pele queimada de sol como a dos migrantes das áreas rurais que, em Pequim, apontam para os estrangeiros no carro ao lado e riem. Eles se espremem em um ônibus da empresa depois de um dia de trabalho na construção civil.
É sobre os quase 800 milhões de chineses que ainda vivem no campo e os 120 milhões de migrantes que vagam pelas cidades sem registro de moradia (o que lhes veta o acesso a serviços públicos) de que fala a imprensa oficial. Os recados são dirigidos a alguns dos próprios dirigentes comunistas, que muitas vezes se confundem com os novos-ricos -a consultoria Merrill Lynch estima que há no país 3 milhões de famílias com mais de US$ 100 mil e 300 mil com mais de US$ 1 milhão.
Mas a retórica contra a ostentação é, sobretudo, uma resposta ao crescente ativismo de grupos independentes que denunciam agressões ao ambiente ou defendem as pessoas que, até a aprovação da nova lei de propriedade, em março, podiam ter suas casas sumariamente requisitadas por autoridades locais, mediante indenização ínfima, para a venda dos terrenos a indústrias ou construtoras. O sinólogo americano Richard Baum calcula que há mais de 300 mil movimentos desse tipo na China.
"É hora de dar um basta à indignidade de funcionários e celebridades escaparem do planejamento familiar. Se algumas elites podem ter vida fácil à custa da maioria, isto levará a um de dois resultados: as pessoas não vão mais respeitar as políticas públicas, ou não acreditarão mais na unidade e na coerência de sua sociedade", escreve o colunista "Ma Jong" no "Shanghai Daily".
No "China Daily", ligado ao Conselho de Estado, um editorial condena a "obsessão dos novos ricos" por barbatana de tubarão, "um símbolo de riqueza e classe" que estaria levando à extinção dos animais. "Eles precisam de comidas caras para abastecer sua autoconfiança", sentencia o jornal. O mesmo diário registra que o prefeito de Pequim, Wang Qishan, criticou o uso de adjetivos como "luxuoso" e "exclusivo" nos outdoors de lançamentos imobiliários, por minarem, diz ele, "o objetivo de manter a harmonia entre os ricos e os pobres".

Pela empresa
Mesmo batendo continência para o igualitarismo, o governo chinês não está nem perto de criar um Estado de bem-estar social. A prioridade ainda é gerar riqueza por meio do crescimento, e não distribuí-la. Numa fábrica de sorvete da Província de Shaanxi, um mural avisa, em chinês e inglês: "Não pergunte o que a empresa pode fazer por você e sim o que você pode fazer pela empresa".
Na China, a universidade pública é paga e não existe serviço universal de saúde nem de aposentadoria. Há programas focalizados de investimentos e complementação de renda para conter a insatisfação dos mais pobres e evitar o êxodo rural -na aldeia da senhora Liang, o técnico agrícola Wang Jiu Zhou pesquisa mudas de cultivos mais rentáveis. Há dez dias, foi anunciada uma reforma gradual do "hukou", o sistema de registro que desde 1958 separa a população urbana e a rural.
Martin Wolf, colunista do "Financial Times", sugeriu há dias que a China aumente o seu gasto social, de modo que os chineses poupem menos para o hospital e a aposentadoria e consumam mais. O mercado interno teria um peso maior no crescimento -contribuindo, de quebra, para a redução das tensões comerciais em torno das exportações chinesas.
Essa é a questão que estará no centro do próximo congresso do PC, o 17º, em outubro. Os chineses não se estendem sobre o assunto. O sinólogo Barry Naughton, da Universidade da Califórnia, disse em seminário recente da Brookings Institution (EUA) que o debate poderá definir "o quão sério é o compromisso da China com uma sociedade mais justa".


A jornalista Claudia Antunes viajou a convite do governo chinês


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