São Paulo, sexta-feira, 03 de junho de 2011

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MINHA HISTÓRIA MARIO DUJISIN

A voz do presidente

"Até hoje os militares não compreendem como fizemos para transmitir as palavras de Allende", diz o jornalista Mario Dujisin, que veiculou o último discurso do ex-presidente chileno, sob ataque de golpistas em 1973, no La Moneda

RESUMO
O jornalista chileno Mario Dujisin, 66, estava de plantão no palácio La Moneda no dia do golpe contra Salvador Allende (1973). "Sempre contei uma história sobre a morte dele, mas parecia um maluco falando sozinho." Para Dujisin, o presidente se matou depois de levar um tiro. O corpo de Allende foi exumado no mês passado, para aclarar as condições de sua morte.

(...)Depoimento a

FELIPE SELIGMAN
DE BRASÍLIA

Tínhamos, no [palácio] La Moneda, um sistema em que os chefes dos departamentos substituíam o diretor geral de Informação, Juan Ibáñez, durante os fins de semana. Ele sempre tinha que estar com o [Salvador] Allende.
Fui escalado no plantão do fim de semana antes do golpe, que aconteceu na terça-feira, 11 de setembro de 1973.
Trabalhei todo o fim de semana e praticamente não dormi durante três dias. Já sabíamos que o golpe viria.
Segunda-feira, Juan Ibáñez me disse: "Você vai dormir e não vai aparecer aqui na terça. Quero todos aqui quinta e sexta, porque esperamos um levante militar".
Já na segunda-feira tivemos algumas informações de movimentos militares nos Andes, mais ou menos a 200 km de Santiago.
Fui para casa e comecei a dormir por volta da meia-noite. Dormi profundamente. De manhã muito cedo acordei e ouvi uma moto que fazia barulho. Fechei a janela, tentei continuar a dormir, mas aquela moto continuava.
Eu morava no quinto andar, mas queria dar um grito para que ela parasse. Não era moto nenhuma. Eram metralhadoras. Foi assim que acordei no dia 11 de setembro.
O Juan Ibáñez tinha a chave do meu apartamento. Eu estava no banheiro. Ele entrou e disse: "Prepare-se, porque vamos para o nosso escritório secreto. Começou o golpe de Estado".
Nós tínhamos feito uma preparação prévia de um escritório mais ou menos a 400 metros do La Moneda, onde tínhamos magnetos -uma espécie de telefone sem cabo que funciona girando uma manivela, como se você fosse fazer arrancar um carro velho dos anos 1920.
Tínhamos esses aparelhos conectados ao La Moneda e a algumas rádios de esquerda, além de telefone e telex. Esse escritório era conhecido apenas por um grupo restrito da Presidência da República, entre eles, Juan e eu.
Havia outros colegas, mas todos estavam dentro do La Moneda. No dia, tivemos comunicação permanente com o palácio. Conectamo-nos com eles várias vezes entre as 9h e as 11h, quando começou o bombardeio.
As últimas palavras do presidente Allende têm uma baixíssima qualidade técnica. Sabe por quê? Porque essa conexão foi feita por nós, via magneto. A gente invertia os fones dos dois aparelhos, -um conectado com o La Moneda e o outro com a rádio- e assim captamos as palavras do presidente. Colocávamos um na frente do outro, invertidos.
Até hoje os militares não compreendem como fizemos para transmitir as palavras de Allende. Eles tinham desligado tudo -eletricidade, linha telefônica.
Fizemos isso com três rádios, mas apenas uma conseguiu transmitir, a Rádio Magallanes, que pertencia ao Partido Comunista do Chile.
Eu tive que sair do país. Fui para a Argentina e comecei a trabalhar no escritório do "Corriere della Sera", em Buenos Aires, mas tive que sair depois de mais ou menos quatro ou cinco meses.
Então eu fui para Budapeste (Hungria), onde conheci minha mulher. Depois fui para Portugal, onde nos casamos. Meu padrinho de casamento foi o Jorge Sampaio, que era o líder de um pequeníssimo partido e depois chegou a ser presidente.
Tenho três filhos. Hoje eu estou muito feliz. Finalmente, 40 anos mais tarde, estão saindo documentos que começam a mostrar a verdade. Eu sempre contei uma história sobre a morte de Allende, mas eu parecia um maluco falando sozinho.
O Allende tinha dois grupos de segurança. O Gap (Grupo de Amigos do Presidente), que era um grupo do Partido Socialista, e a Polícia de Investigações.
Na noite do dia 11 de setembro, nós nos encontramos com o inspetor-chefe da polícia, Juan Segoane. Ele nos contou uma versão que eu repito há muitos anos. Foram as duas coisas: Allende foi assassinado e foi suicídio.
Naquela noite ele disse que Allende estava muito ferido quando já ouvia os passos dos militares entrando no La Moneda.
Para não ser capturado vivo, deu um tiro em si mesmo. Mas isso quando já estava muito ferido, porque ele combateu mesmo, pela janela, no pátio, até o fim.
Eu não tenho dúvidas disso. Allende sempre dizia: "De La Moneda solo salgo con un terno de madera [do La Moneda só saio com um terno de madeira]".


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