São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ÁSIA

Discurso nuclear e trilha de canções patrióticas marcam visita de brasileiro ao país

Comunismo e ódio aos EUA resistem na Coréia do Norte

Magnus Macedo/Folha Imagem
Menino brinca na praça Kim Il-sung, sede de prédios governamentais, cujas dimensões gigantescas a fazem parecer sempre deserta


MAGNUS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM PYONGYANG

Quando o avião tocou o solo do Aeroporto Internacional de Pyongyang, foi como pousar num passado de 50 anos. Ao lado da pista de pouso, jaziam aviões enferrujados, ônibus decrépitos e carros antigos. O prédio do aeroporto era despojado ao extremo.
Um grupo com as famosas boinas verdes, típicas do Exército norte-coreano, nos aguardava ao pé das escadas. Dois ônibus esperavam os demais passageiros -em sua maioria, chineses, norte-coreanos e russos. Eu, com certeza, era o único brasileiro, e meus amigos, os únicos americanos.
Os funcionários oficiais se mostraram educados, mas firmes, e não houve troca de sorrisos. Tentei algumas vezes um contato visual amigável, mas não deu certo. Na imigração, a funcionária, dona de um olhar frio, manifestou pouca surpresa ao ver um passaporte ocidental. Era evidente que eles tinham sido informados de nossa chegada. Não é sempre que há jornalistas ocidentais por aqui.


Duas garotinhas se aproximaram. Disseram odiar os americanos. "Elas aprendem isso na escola", disse o monitor


Recolhemos nossas bagagens da esteira sob o olhar vigilante e atento de oficiais militares e funcionários governamentais. Fora das áreas de raio-X, três "monitores" do governo nos aguardavam. Eram amigáveis, mas pareciam nervosos, também. A primeira coisa que nos perguntaram foi se tínhamos computadores ou celulares. Já sabíamos que equipamentos desse tipo não são permitidos na Coréia do Norte, então os entregamos sem hesitar.
Saindo do aeroporto, de carro, pude ver arrozais ao longo de toda a estrada até Pyongyang. Murais do líder Kim Il-sung e cenas da revolução ocupavam quase todas as esquinas. Apesar de ser o meio da tarde de um dia útil, não havia muito movimento nas ruas.
Pyongyang tem uma população de 2,5 milhões, mas a impressão que se tem ao passar pela cidade de automóvel é que estamos em um final de semana prolongado. Mais tarde, descobriríamos que, só nos horários de rush, o trânsito aumenta e os trens lotam. O horário das escolas coincide com o dos trabalhadores, e a cidade se agita por poucas horas.
Nossa equipe de cinco pessoas foi dividida em três carros, com um monitor do governo em cada um. Em nosso carro, o sr. Li, funcionário do Ministério das Relações Exteriores, explicava com orgulho o significado de monumentos gigantes por que passávamos.
Ao passarmos pela praça Kim Il-sung, onde ficam os principais prédios governamentais, o sr. Li não pôde conter a alegria. "Veja, aquele é Karl Marx! E aquele é Lênin! E do outro lado você pode ver nosso grande líder, Kim Il-sung!"
A praça estava quase vazia, com a exceção de algumas centenas de estudantes que ensaiavam um desfile. Suas proporções são tão grandes que, com centenas de crianças, ainda parecia vazia.
Os norte-coreanos parecem adorar seu líder supremo e fundador do país, Kim Il-sung, e seu filho, Kim Jong-il -que hoje ostenta os títulos de secretário-geral do Partido dos Trabalhadores da Coréia, presidente da Comissão de Defesa Nacional do país e comandante supremo do Exército Popular da Coréia.
Qualquer referência a eles é precedida de muitos adjetivos e elogios. A propaganda política é pesada. Os canais de TV transmitem marchas militares e canções nacionais entre um programa e outro. Mensagens de conscientização cívica e lembretes sobre deveres são difundidos constantemente na TV. Os anúncios são seguidos por "canções da liberdade".
Ouve-se música constantemente nas ruas de Pyongyang. São canções de vitória, sobre a revolução e versos pela a unificação com a Coréia do Sul. Segundo o sr. Li, isso acontece diariamente desde o fim da guerra, mais de 50 anos atrás. "Fazemos isso para alegrar os trabalhadores, enquanto eles trabalham", diz ele, sorrindo.

"Temos muitas armas"
Quando chegamos ao hotel, recebemos a orientação de descer em uma hora para jantar com o vice-chanceler da Coréia do Norte, Kim Gye-gwang. Homem baixo e de aparência simpática, na casa dos 60 anos, Kim apareceu pontualmente. No jantar, fez vários brindes à nossa visita, com vários tipos de bebidas alcoólicas à base de arroz. (Em dado momento, eu me vi com um copo de cerveja, um copo de uísque, um cálice de vinho tinto e outro de aguardente de arroz à minha frente.) A comida era abundante, e saboreei pratos sem saber se eram de frango, camarões ou outra coisa. Ainda assim, eram deliciosos.
Depois de vários brindes, Kim falou da questão nuclear. "Sim, temos muitas armas nucleares... precisamos estar preparados para usá-las no caso de os americanos atacarem", disse. "Precisamos ter condições de nos defender. E estamos no processo de fabricar muitas outras." Questionado sobre a possibilidade de terem mísseis, respondeu: "Sim, temos, e eles são capazes de transportar ogivas nucleares". Nós o indagamos sobre o alcance dos mísseis. "Não vou dizer isso a vocês. Obviamente, não", sorriu.
Kim destacou que está muito interessado em avanços com os EUA. "Temos grandes esperanças de que o governo [George W.] Bush aceite nossa proposta de negociação bilateral." Mais tarde, acrescentou que os coreanos estão decepcionados com a ONU. "O mundo nos desapontou. Os imperialistas americanos colocaram mais de 2 milhões de homens, incluindo suas enormes Forças Armadas, as tropas fantoches da Coréia do Sul e tropas de seus 15 países satélites, sob o manto de "forças da ONU"."
Sobre a unificação, ele disse: "Sonhamos com o dia em que a Coréia estará unificada". Mas descreveu o governo sul-coreano como "sem escrúpulos".
Kim insistiu em que os EUA deixem de descrever seu país como parte do "eixo do mal". "Essas palavras nos ofendem profundamente", disse. "Os coreanos têm muito orgulho de seu país e lutariam até o fim para defendê-lo."
Indagado sobre milhões de cidadãos norte-coreanos que estariam em risco devido à fome, Kim não confirmou nem negou. "A Coréia tem problemas, como qualquer outro país." Segundo o Programa Mundial de Alimentação da ONU, mais de 3 milhões podem morrer de fome se o país não receber mais ajuda.
Meus colegas americanos disseram a Kim que os EUA também são um país dividido e que 50% de sua população não votou no governo atual. Kim sorriu e fez outro brinde, desta vez, com uísque. "Sintam-se muito bem-vindos à Coréia", disse, em inglês.

Censura
O dia após o jantar seria nosso primeiro dia de filmagens. Logo cedo, tínhamos de gravar numa rua de Pyongyang para o noticiário noturno da ABC. Nossos dois monitores estavam muito preocupados com o que apareceria no segundo plano. Depois de muita discussão e checagem do ângulo da câmera, eles finalmente chegaram a um acordo.
Li e Jang começaram, então, a anotar tudo o que dizia nosso correspondente e o que comentávamos entre nós. Aliás, eles faziam anotações até durante o jantar.
Concluímos a gravação, e, enquanto nosso produtor corria para a emissora de TV nacional, a KTR, eu, o cinegrafista e Jang fomos ao centro da cidade fazer algumas imagens gerais. Tínhamos apenas sete minutos. Conseguimos filmar algumas pessoas indo ao trabalho, pontos de ônibus, etc. e corremos até a estação de TV para completar a transmissão.
Tudo ia bem até que nosso monitor viu as imagens inócuas de pessoas nos pontos. Era cedo, e as canções da revolução já tocavam nas ruas. Li saltou da cadeira e tentou impedir a transmissão. Nosso produtor tentou discutir, mas ele estava muito sério. "Essas imagens não têm nada a ver com a razão pela qual vocês estão aqui", dizia. "Os coreanos não gostam de ser filmados por estrangeiros. Por que fizeram isso?" Insistia: "Eu tenho o poder aqui, e vocês têm de fazer o que eu mando".
Durante os cinco dias que durou nossa visita, fomos autorizados a fazer três transmissões ao vivo desde o estacionamento da emissora de televisão, além de nossas transmissões diárias. Os monitores vigiavam tudo.

Cidade e campo
As ruas de Pyongyang ficam totalmente escuras a partir das 22h.
Fiquei espantado com o espírito comunitário evidenciado pelos norte-coreanos. Os moradores de edifícios têm de manter limpas as ruas e a parte externa dos prédios. Vimos muitas pessoas comuns, de uniforme cinza com uma insígnia com a bandeira ou uma foto do grande líder, arrancando mato das calçadas ou lustrando os monumentos. Muitas estavam agachadas no chão, varrendo as ruas com escovas pequenas.
O governo decretou também que cada trabalhador precisa dedicar pelo menos duas semanas de seu tempo, duas vezes por ano, ao trabalho nos arrozais.
Visitamos um deles, onde entrevistamos um operário que tinha passado o dia todo transplantando arroz. Ele e seus colegas ficavam felizes de fazer esse trabalho, pois era por uma causa nobre: "Alimentar nosso povo".
Conversamos com um rapaz de 19 anos que pescava num lago. Ele disse que queria entrar para o Exército para defender seu país dos "ianques". Afirmou que odiava os americanos porque eles matam coreanos. Nosso correspondente perguntou se ele já estivera com um americano, e ele respondeu que não. "Eu sou americano", disse Bob. O rapaz deu um sorriso tímido e, hesitante, apertou a mão de Bob. Tudo isso com nosso monitor traduzindo e anotando.
Paramos diante de um vilarejo (não fomos autorizados a entrar) para filmar alguns gráficos de "produtividade" expostos nos campos da cidadezinha. Ao lado dos gráficos, havia bandeiras com versos incentivando o trabalho e elogiando o grande líder.
Enquanto filmávamos, duas garotinhas se aproximaram. Elas deviam ter entre 6 anos e 9 anos e disseram odiar os americanos "porque eles matam pessoas inocentes na Coréia". Afirmaram que, por causa dos americanos, muitas pessoas em seu país vivem separadas. "Elas aprendem isso na escola", disse o monitor. "Está escrito nos livros de história."
Nossa parada seguinte foi o Palácio das Crianças, uma gigantesca construção de mármore erguida para o ensino dos melhores estudantes da Coréia do Norte.
Fomos informados de que só crianças excepcionalmente dotadas são aceitas ali. Em um rápido tour, vimos alunos esculpindo, costurando, pintando, cantando, dançando, tocando instrumentos, recitando poemas para seu líder e fazendo acrobacias. Alguns eram muito pequenos.
Todas essas atividades são extracurriculares. Essas crianças ainda freqüentam a escola normal, para ter acesso ao melhor dos dois ensinos.

A fronteira
A chamada "zona desmilitarizada", ou ZDM, é desmilitarizada apenas no nome. Ela deve ser uma das fronteiras mais tensas do mundo. Foi ali que, em 1953, foi assinado o armistício entre os coreanos e as tropas dos EUA e aliadas, pondo fim à guerra.
Numa situação surrealista, ela é também destino turístico. A visita é conduzida por oficiais do Exército. Nosso guia explicou que, "para o Exército coreano, o inimigo ainda está ali, a metros de distância". "É uma ameaça constante à nossa liberdade."
Do lado norte-coreano da fronteira, soldados com expressões fechadas vigiam a linha de separação. Do outro lado, há torres de observação e diversas câmeras operadas por controle remoto. A segurança do lado sul é feita por sul-coreanos e americanos.
"Os ianques são responsáveis por dividir nosso país, e jamais descansaremos até que eles tenham partido por completo. Não temos medo deles. A Coréia tem o Exército mais bem treinado do mundo. Nossa nação é muito unida, e jamais abriremos mão da idéia de libertar nossos compatriotas do sul", disse o guia.
"Quero enviar uma mensagem aos ianques", prosseguiu. "Se vocês forem loucos o suficiente de cogitar nos atacar, terão de arcar com as conseqüências, que irão atingir não apenas vocês mas também o mundo todo!"
O pensamento por trás daquele soldado baixo e carrancudo, em pé sob a chuva, a apenas 50 metros do que ele vê como sendo os "invasores imperialistas", continua tão inconcebível hoje quanto sempre foi. Poderá esse lugar tornar-se palco de outra explosão nuclear? É difícil imaginá-lo, mas está longe de ser impossível.

Magnus Macedo, jornalista brasileiro radicado em Londres há 22 anos, trabalha para redes de TV estrangeiras como freelancer em coberturas na Europa, na Ásia, no Oriente Médio e na África. A Coréia do Norte foi seu destino mais recente, em trabalho para a rede ABC, dos EUA
Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Organizações internacionais: Direita e Congresso dos EUA querem reforma abrangente da ONU
Próximo Texto: EUA: Washington monitora usuário de biblioteca
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.