São Paulo, domingo, 04 de março de 2001

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ÁFRICA
Termina a saga do bando de meninos que enfrentou fome, animais ferozes, rebeliões e grupos armados após fugir da guerra civil
EUA recebem "garotos perdidos" do Sudão

RODRIGO UCHÔA
COORDENADOR DE ARTIGOS EVENTOS

Nos próximos meses, deve acabar a saga dos "garotos perdidos" do Sudão. Uma história de mais de 12 anos e de quase 3.000 km de andanças em meio às guerras civis do leste da África pode chegar ao fim com o embarque para os EUA de pelo menos 3.800 jovens -com idades de 14 a 21 anos- que estão num campo de refugiados no Quênia.
Parece fantasia. Em 1988, um bando de 17 mil garotos com não mais do que 12 anos -muitos ainda bebês de colo- saiu a pé do sul do Sudão, "escoltado" por pouco mais de cem adultos. Fugindo da guerra civil em que o país está engalfinhado quase ininterruptamente desde a independência, em 1956, o maior temor deles era a incorporação forçada ao EPLS (Exército Popular de Libertação do Sudão).
A guerrilha do EPLS luta pela autonomia das regiões do sul e pela liberdade religiosa. Nessa área, a maioria da população é cristã ou animista. As duas principais etnias sudanesas -os árabes e os núbios, quase 50% da população- são majoritariamente muçulmanas e habitam o norte, dominando a administração.
A última grande onda de rebeliões foi iniciada quando Cartum resolveu implementar, em meados dos anos 80, a lei islâmica em todo o país. "O EPLS passou a "roubar" os meninos das aldeias, criando um clima de pânico em toda a região", disse à Folha, por e-mail, o britânico Patrick Nielson, da ONG de auxílio a refugiados Saving Africa.
"O terror era exercido pelos dois lados do conflito: o Exército sudanês promovia massacres sob o argumento de estar destruindo o refúgio de guerrilheiros; e a guerrilha "alistava" meninos de até 6 anos de idade", afirma.
O percurso da fuga não foi fácil. Como era muito difícil passar pela cadeia de montanhas que separa o Sudão de Uganda, o grupo foi para o leste, atravessando uma área de pântanos do tamanho de Alagoas. Teve de cruzar os rios caudalosos da bacia do Nilo.
Em 1991, o exército dos "garotos perdidos" chegou a uma Etiópia que vivia a sua própria guerra civil. Poucos meses depois, o ditador etíope Mengistu Hailé Mariam era deposto. Sob ataques dos rebeldes etíopes e da aviação sudanesa, os "garotos perdidos" reiniciaram a sua marcha.
Havia ainda um novo complicador. Grupos paramilitares árabes financiados pelo general Omar Bashir, o ditador sudanês de plantão, tinham iniciado uma campanha para expulsar diversas aldeias da região produtora de petróleo.

Rumo ao Quênia
Passando por uma região de savana, durante os dois anos seguintes, eles ziguezaguearam por mais de 1.000 km.
A fome, a doença, a perseguição dos paramilitares e até os ataques de animais ferozes, inclusive leões, foram dizimando o grupo: calcula-se que cerca de 5.000 tenham morrido apenas durante a jornada.
Vencidos pelo cansaço e pelo desânimo, alguns voltaram para o Sudão e acabaram se incorporando à guerrilha, outros se perderam no caminho, e há notícias de que algumas das comunidades da etnia dinka da região os adotaram -como a maioria dos garotos era dessa etnia, a adaptação pode ter sido mais fácil.
Em 1993, eles chegaram ao norte do Quênia, onde, a uns 120 km da fronteira com o Sudão, se estabeleceram no campo de refugiados de Kakuma. Mas, culturalmente, o impacto dos dinka com as etnias do norte queniano foi muito grande, o que impediu a absorção dos 3.800 remanescentes pela comunidade local.
Foi quando o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) começou o programa de auxílio que agora está em curso. Cerca de 400 dos "garotos perdidos" já seguiram para os EUA desde novembro. Alguns já estão sofrendo com a adaptação, mas estão em segurança.

Mais resgates

Na semana passada, outras 2.800 crianças, soldados de 8 a 18 anos de idade que participavam da guerrilha do EPLS, foram libertadas numa operação secreta do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Elas foram retiradas de zonas de combate em grupos de cem, em dois aviões de carga Buffalo do Programa Mundial de Alimentação da ONU.
A operação durou cinco dias. As que não tiverem parentes vivos poderão entrar no mesmo programa dos "garotos perdidos" de Kakuma.



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