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ÁFRICA
Termina a saga do bando de meninos que enfrentou fome, animais ferozes, rebeliões e grupos armados após fugir da guerra civil
EUA recebem "garotos perdidos" do Sudão
RODRIGO UCHÔA
COORDENADOR DE ARTIGOS EVENTOS
Nos próximos meses, deve acabar a saga dos "garotos perdidos"
do Sudão. Uma história de mais
de 12 anos e de quase 3.000 km de
andanças em meio às guerras civis do leste da África pode chegar
ao fim com o embarque para os
EUA de pelo menos 3.800 jovens
-com idades de 14 a 21 anos-
que estão num campo de refugiados no Quênia.
Parece fantasia. Em 1988, um
bando de 17 mil garotos com não
mais do que 12 anos -muitos
ainda bebês de colo- saiu a pé do
sul do Sudão, "escoltado" por
pouco mais de cem adultos. Fugindo da guerra civil em que o
país está engalfinhado quase ininterruptamente desde a independência, em 1956, o maior temor
deles era a incorporação forçada
ao EPLS (Exército Popular de Libertação do Sudão).
A guerrilha do EPLS luta pela
autonomia das regiões do sul e
pela liberdade religiosa. Nessa
área, a maioria da população é
cristã ou animista. As duas principais etnias sudanesas -os árabes
e os núbios, quase 50% da população- são majoritariamente
muçulmanas e habitam o norte,
dominando a administração.
A última grande onda de rebeliões foi iniciada quando Cartum
resolveu implementar, em meados dos anos 80, a lei islâmica em
todo o país. "O EPLS passou a
"roubar" os meninos das aldeias,
criando um clima de pânico em
toda a região", disse à Folha, por
e-mail, o britânico Patrick Nielson, da ONG de auxílio a refugiados Saving Africa.
"O terror era exercido pelos
dois lados do conflito: o Exército
sudanês promovia massacres sob
o argumento de estar destruindo
o refúgio de guerrilheiros; e a
guerrilha "alistava" meninos de até
6 anos de idade", afirma.
O percurso da fuga não foi fácil.
Como era muito difícil passar pela
cadeia de montanhas que separa
o Sudão de Uganda, o grupo foi
para o leste, atravessando uma
área de pântanos do tamanho de
Alagoas. Teve de cruzar os rios
caudalosos da bacia do Nilo.
Em 1991, o exército dos "garotos
perdidos" chegou a uma Etiópia
que vivia a sua própria guerra civil. Poucos meses depois, o ditador etíope Mengistu Hailé Mariam era deposto. Sob ataques dos
rebeldes etíopes e da aviação sudanesa, os "garotos perdidos" reiniciaram a sua marcha.
Havia ainda um novo complicador. Grupos paramilitares árabes
financiados pelo general Omar
Bashir, o ditador sudanês de plantão, tinham iniciado uma campanha para expulsar diversas aldeias
da região produtora de petróleo.
Rumo ao Quênia
Passando por uma região de savana, durante os dois anos seguintes, eles ziguezaguearam por
mais de 1.000 km.
A fome, a doença, a perseguição
dos paramilitares e até os ataques
de animais ferozes, inclusive
leões, foram dizimando o grupo:
calcula-se que cerca de 5.000 tenham morrido apenas durante a
jornada.
Vencidos pelo cansaço e pelo
desânimo, alguns voltaram para o
Sudão e acabaram se incorporando à guerrilha, outros se perderam no caminho, e há notícias de
que algumas das comunidades da
etnia dinka da região os adotaram
-como a maioria dos garotos era
dessa etnia, a adaptação pode ter
sido mais fácil.
Em 1993, eles chegaram ao norte do Quênia, onde, a uns 120 km
da fronteira com o Sudão, se estabeleceram no campo de refugiados de Kakuma. Mas, culturalmente, o impacto dos dinka com
as etnias do norte queniano foi
muito grande, o que impediu a
absorção dos 3.800 remanescentes pela comunidade local.
Foi quando o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados) começou o programa de auxílio que agora está
em curso. Cerca de 400 dos "garotos perdidos" já seguiram para os
EUA desde novembro. Alguns já
estão sofrendo com a adaptação,
mas estão em segurança.
Mais resgates
Na semana passada, outras
2.800 crianças, soldados de 8 a 18
anos de idade que participavam
da guerrilha do EPLS, foram libertadas numa operação secreta do
Unicef (Fundo das Nações Unidas
para a Infância). Elas foram retiradas de zonas de combate em
grupos de cem, em dois aviões de
carga Buffalo do Programa Mundial de Alimentação da ONU.
A operação durou cinco dias. As
que não tiverem parentes vivos
poderão entrar no mesmo programa dos "garotos perdidos" de
Kakuma.
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