São Paulo, segunda-feira, 04 de abril de 2005

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Para Tariq Ali, papado lembrou a Idade Média

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

"João Paulo 2º pôs a mais moderna tecnologia a serviço de um papado digno da Idade Média." Para o escritor paquistanês Tariq Ali, o papa foi um "contra-revolucionário", responsável pelo fato de a igreja ter dado muitos passos para trás e de ter se mantido praticamente ausente de questões importantes, como a luta pelos direitos humanos no Terceiro Mundo e o conflito entre israelenses e palestinos no Oriente Médio.
Historiador, ensaísta político e romancista, Ali é autor de "Confronto de Fundamentalismos" e "Bush na Babilônia" (lançados no Brasil pela Record) e editor da britânica "New Left Review". De Londres, onde vive, o escritor concedeu a seguinte entrevista à Folha, por telefone.

Folha - Como o sr. analisa politicamente o papado de João Paulo 2º?
Tariq Ali -
O movimento que ele promoveu nos rumos da Igreja Católica funciona como um espelho da atual situação mundial, refletindo exatamente o que aconteceu nos últimos anos na esfera político-econômica. Se nesta vimos o apogeu do neoliberalismo, da social-democracia, o triunfo do Consenso de Washington, o mesmo aconteceu no papado. Além disso, culminou também numa situação de imenso autoritarismo e de rigidez nos procedimentos de decisão e na hierarquia da igreja.

Folha - O que se perdeu nesse processo?
Ali -
O papa João 23 havia promovido uma série de reformas que facilitaram a participação de igrejas da África e da América do Sul nas decisões centrais. Houve uma tendência à democratização, uma preocupação com as discussões de gênero e a possibilidade de expandir movimentos como a Teologia da Libertação. João Paulo 2º, antes de virar papa, sempre votou contra essas reformas.
E, quando assumiu, o primeiro que fez foi anunciar que se havia ido longe demais, que a guinada à esquerda havia ultrapassado os limites. Hoje, tudo aquilo que havia sido construído antes dele se foi.
Wojtyla foi um contra-revolucionário. Foi um papa autoritário que deixou abandonados religiosos que, no Terceiro Mundo, travavam uma luta pelos direitos humanos.


Wojtyla foi um contra-revolucionário. Abandonou religiosos que, no Terceiro Mundo, lutavam pelos direitos humanos
Folha - O que acha da posição dele com relação a conflitos recentes, como a Guerra do Iraque ou a constante crise no Oriente Médio?
Ali -
Ter se posicionado contra a Guerra do Iraque foi seu único acerto do ponto de vista político. Quanto à questão palestina, podemos considerar que foi ausente. Não ajudou a minimizar os conflitos em Israel. Do ponto de vista mais global, são lamentáveis suas posições conservadoras sobre a contracepção e o aborto.

Folha - E sua influência no fim do comunismo na Europa do Leste?
Ali -
Wojtyla foi o primeiro e o último papa do antigo bloco soviético. Ele foi necessário e teve um papel importante do ponto de vista ideológico ao pavimentar a estrada para a restauração do capitalismo, ainda que mesmo ele tenha ficado depois chocado pela rudeza dos novos governantes ligados ao livre mercado.
De um modo esquisito, o pós-stalinismo não era diferente da Igreja Católica. O Vaticano tinha o papa e os cardeais. Moscou tinha o secretário geral e o politburo. Ambos, papa e secretário geral eram considerados infalíveis.
Enquanto era um forte oponente do stalinismo e do comunismo, o cardeal polonês aprendeu algumas jogadas com eles. A única questão é: o pós-stalinismo implodiu. Será que o catolicismo também implodirá?

Folha - Como você vê a lenta transmissão de sua agonia e morte, coroando um papado que teve uma forte relação com a mídia?
Ali -
O espetáculo midiático a que assistimos é o apogeu de como o papa lidou com o mundo da comunicação globalizada. João Paulo 2º sempre adorou as câmeras de televisão. Nesse sentido, acho que sempre agiu como um político inteligente e de direita. Ele pôs a mais moderna tecnologia a serviço de um papado digno da Idade Média.
E o que estamos vendo nessa cobertura de sua morte faz pensar no quão grotesca se transformou essa instituição que chega ao século 21 sem se reformar. Temo pelo fanatismo pró-religião que o espetáculo gera, mas sinto que as conseqüências podem ser também no sentido de fortalecer um sentimento anti-religião.


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