São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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Medvedev herda Rússia mais rica e menos livre

No governo Putin, economia do país se recuperou, mas democracia se fragilizou

Presidente que toma posse na quarta deu sinais de que buscará aliviar deficiências internas, mas analistas têm dúvidas de seu poder de fato


NEIL BUCKLEY
DO "FINANCIAL TIMES", EM MOSCOU

A Rússia está no limiar de uma transição histórica. O novo presidente, Dmitri Medvedev, 42, que assume o poder nesta quarta-feira, será o mais jovem líder russo desde o último czar, Nicolau 2º, que subiu ao trono aos 26, em 1894.
E, pela primeira vez, o chefe de Estado não deixará o poder no caixão, doente ou à força. Em lugar disso, Vladimir Putin completará seu mandato como requer a Constituição e no auge de seu poder e de sua popularidade. Mas ele não está abandonando o palco político. Vai se tornar premiê no governo de Medvedev e assim continuará a ser uma força dominante.
A chegada do terceiro presidente do país na era pós-comunista suscita muitas questões. Como funcionará a parceria Medvedev-Putin? Poderá ela evitar a instabilidade associada a passadas tentativas russas de estruturas de poder dual? O pêndulo que oscilou do caótico liberalismo dos anos 90 para o capitalismo autoritário desta década se moverá um pouco na direção oposta sob Medvedev?
O novo presidente está herdando um país transformado, para o bem e para o mal, nos oito anos transcorridos desde que Putin assumiu. O crescimento econômico anual tem mantido a média de 7%. Propelido primeiro pela retomada do valor do rublo depois da crise financeira de 1998 e depois pelos preços recorde de energia e matéria-prima, ele vem sendo sustentado por um boom de consumo e investimento.
Isso produziu um extraordinário aumento de 600% no PIB (Produto Interno Bruto) nominal do país nos dois mandatos de Putin, chegando a US$ 1,27 trilhão no ano passado. Um país que estava quase falido uma década atrás amealhou reservas de US$ 500 bilhões em ouro e moedas fortes, as terceiras maiores do mundo.
Os salários médios saltaram de US$ 80 ao mês em 2000 para US$ 640, agora. Uma crescente classe consumidora dirige Fords, toma café no Starbucks, tira férias na Turquia e compra em imensos shoppings repletos de produtos com os quais ninguém sonhava na era soviética.

Problemas
Alexei Kudrin, ministro das Finanças, diz que, agora que o PIB real enfim retomou o nível de 1990, o país chegou a um momento marcante. "Atingimos um marco que demonstra que por fim superamos a crise pós-comunismo", afirma.
Outra prova da recuperação russa é o fato de que, passada só uma década de sua grave crise financeira, o país é visto como uma espécie de refúgio seguro contra os tumultos causados em outros lugares pela compressão no mercado de crédito.
Mas a dívida empresarial total superior a US$ 400 bilhões começa a causar certo alarme. Ter de garantir liquidez suficiente no sistema bancário também complicará a luta contra um problema que era visto como derrotado: a inflação, que, no ano passado, subiu a 12%.
O país também enfrenta imensos problemas de longo prazo. Eles incluem a população em declínio e uma infra-estrutura de serviços sociais e transportes digna de uma nação do Terceiro Mundo. Críticos dizem que, ao recusar reformas em seu segundo mandato e concentrar suas atenções na tomada de controle de ativos energéticos, Putin perdeu uma oportunidade histórica de realizar uma transformação muito mais profunda.
Bóris Nemtsov, político liberal, e Vladimir Milov, presidente de um instituto de pesquisa sobre energia, publicaram um relatório altamente crítico sobre a era Putin. "As oportunidades colossais criadas pelos preços muito elevados do petróleo deveriam ter sido usadas por Putin para modernizar o país, executar reformas econômicas e criar um Exército e sistemas de saúde e previdência modernos. Nada disso foi feito", concluíram.

Democracia frágil
A estabilidade e a prosperidade russas foram acompanhadas por uma erosão da democracia, da liberdade de imprensa e da sociedade civil. Ainda que Putin esteja cumprindo a Constituição e deixando o cargo, ele só o está fazendo após uma série de medidas repressivas para assegurar uma transição suave em benefício do sucessor que escolheu e sufocar o surgimento de um candidato de oposição competitivo.
A eleição presidencial vencida por Medvedev foi a mais pesadamente controlada que o país já viu desde a era soviética. Graças às medidas oficiais de interferência e às suas disputas internas, a oposição democrática está completamente desestruturada e sem esperança. Não conta nem mesmo com representação no Parlamento, dominado pelo governismo.
A Rússia que Medvedev governará não é uma democracia com economia de mercado, dotada de instituições desenvolvidas e de um Estado de direito. Em vez disso, o país está sob controle de uma imensa burocracia, que age quase sem restrições. E, como dizem Nemtsov e Milov, "suborno e convergência entre serviço civil e empresas se tornaram a norma em todos os níveis de governo".
O novo presidente deixou claro que defenderá os interesses externos da Rússia de maneira tão robusta quanto Putin. Mas, em termos de política interna, Medvedev demonstrou surpreendente disposição de ao menos reconhecer algumas das deficiências. Em uma série de discursos, ele repetiu o slogan de que "liberdade é melhor do que não-liberdade". "A Rússia tem todas as oportunidades de construir uma sociedade democrática e desenvolvida e um Estado plenamente democrático", disse em entrevista ao "Financial Times". Também prometeu combater a corrupção e estabelecer um Estado de direito, ou, ao menos, como afirma em outro de seus slogans, eliminar o "niilismo legal" do país.
Mas ainda é cedo demais para dizer se Medvedev tem a força de vontade e o poder necessários para cumprir o que promete. A oposição trata o sucessor de Putin como criatura do sistema que diz querer reformar. Mas muitos russos estão dando a Medvedev o benefício da dúvida e expressam a esperança de que um presidente mais jovem possa reforçar os aspectos positivos dos anos Putin e mitigar os negativos.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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