São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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Os delírios do ditador Saddam vistos de dentro

Relatos mostram que ex-líder iraquiano acreditava na resistência do regime à invasão dos EUA

A QUEDA de Bagdá, em abril de 2003, abriu para o escrutínio externo um dos governos mais brutais da história. Estudo sobre documentos do alto escalão do governo iraquiano revelaram como o regime de Saddam Hussein enfrentou a invasão do Iraque.

KEVIN WOODS, JAMES LACEY E WILLIAMSON MURRAY
DA "FOREIGN AFFAIRS"

Durante anos de relativa paz para o Iraque no cenário externo, após a operação Tempestade no Deserto, de 1991, Saddam Hussein continuou a receber e dar crédito a avaliações otimistas das perspectivas de seu regime, apresentadas por seus mais altos oficiais militares. O vice-primeiro-ministro Tariq Aziz descreveu o ditador como "muito confiante" em que os EUA não ousariam atacar o Iraque, e que, se o fizessem, seriam derrotados. Qual foi a origem da confiança de Saddam? A julgar por suas declarações particulares, o elemento que foi mais importante, isoladamente, nos cálculos estratégicos de Saddam foi sua confiança em que a França e a Rússia impediriam uma possível invasão americana. De acordo com Aziz, a confiança de Saddam tinha raízes firmes em sua crença na ligação entre os interesses econômicos da França e da Rússia e as metas estratégicas dele, Saddam. O comandante do Exército e do Estado-Maior iraquiano, Ibrahim Ahmad Abd al Sattar, declarou que Saddam acreditava que, mesmo que suas fontes de apoio internacional falhassem e que os EUA de fato lançassem uma invasão terrestre, Washington em pouco tempo se dobraria à pressão internacional e suspenderia a guerra. De acordo com seu intérprete pessoal, Saddam também pensava que suas forças "superiores" oporiam "uma resistência heróica".

Invasão
Quando a invasão da coalizão se concretizou, Saddam continuou a apegar-se obstinadamente à idéia de que os americanos se satisfariam com um resultado que não chegasse à mudança de regime. A convicção de Saddam de que seu regime sobreviveria à guerra foi a razão primordial pela qual não ordenou que suas forças ateassem fogo aos campos petrolíferos iraquianos nem abrissem as comportas das barragens para inundar o sul do país. Alguns oficiais militares iraquianos de alto escalão não compartilhavam as premissas de seu líder, adotando uma visão mais pessimista. O diretor de inteligência militar, Zuhayr Talib Abd al Sattar al Naqib, comentou que, excetuando Saddam e o círculo mais estreito de seus assessores, a maioria dos iraquianos que tinham conhecimento da situação acreditava, secretamente, que a guerra seguiria até virar uma ocupação. O comandante do Primeiro Corpo da Guarda Republicana admitiu: "Depois que os americanos começassem, não haveria nada que poderia ser feito para fazê-los parar". No final de março de 2003, Saddam, ao que tudo indica, ainda acreditava que a guerra estava tomando o rumo que ele tinha previsto. Se o Iraque não a estava vencendo, tampouco a estava perdendo -ou, pelo menos, era assim que as coisas se mostravam para o ditador. Naquele ano, as forças armadas iraquianas estavam enfraquecidas em razão de 13 anos de enfrentamentos quase contínuos com as forças aéreas dos EUA e do Reino Unido, o efeito cumulativo das sanções e impacto insidioso das políticas disfuncionais seguidas pelo regime. A principal missão das forças armadas iraquianas era garantir a segurança interna da ditadura baathista. Preocupadas com tudo, menos em travar guerras, as forças iraquianas, que no passado aspiravam a um profissionalismo em estilo ocidental, passaram a focalizar questões irrelevantes em termos militares, mas que, mesmo assim, eram de vida ou morte. Com relação às armas de destruição em massa (ADM), Saddam tentou convencer um público de que elas não existiam mais e, ao mesmo tempo, levar outro público a acreditar que o Iraque ainda as possuía. Ser transparente quanto às ADM e colaborar plenamente com as inspeções, de modo a evitar as sanções, teria sido sua melhor opção a longo prazo. Mas Saddam achou impossível abrir mão da ilusão de possuir ADMs, especialmente porque elas funcionavam tão bem para ele no mundo árabe. No final de 2002, Saddam finalmente se inclinou a tentar convencer a comunidade internacional de que o Iraque estava cooperando com os inspetores da ONU e de que o país não possuía mais programas de armas de destruição em massa. Mas, após anos de ocultação proposital da verdade, tornou-se difícil convencer qualquer parte interessada de que o Iraque não estava novamente sendo econômico com a verdade.

Sanções
Ainda outro fator veio reduzir a eficácia militar do Iraque: as sanções. Durante mais de 12 anos, as sanções da ONU tinham enfraquecido as forças armadas iraquianas, na medida em que dificultaram a aquisição de novos equipamentos ou mesmo peças e componentes, além do financiamento de treinamento adequado. As tentativas de superar os efeitos das sanções levaram Saddam a criar a Comissão Militar Industrial, como meio de manter as Forças Armadas. A comissão e uma série de organizações subordinadas a ela foram regularmente prometendo novas capacidades para contrabalançar os efeitos do treinamento insuficiente, moral baixo e equipamentos sem manutenção. Ao que tudo indica, Saddam ficou aguardando armas fantásticas que pudessem reverter a erosão de sua força militar. Um relatório anual da Comissão Militar Industrial sobre investimentos feitos em 2002-03, documento esse obtido pelas forças americanas, listava mais de 170 projetos de pesquisa, cujo orçamento estimado chegava a aproximadamente 1,5% do PNB do Iraque. Um alto funcionário iraquiano afirmou que os líderes da comissão tinham tanto medo de Saddam que, quando ele lhes ordenava que desenvolvessem programas de armas que eles sabiam que o país não poderia levar adiante, eles diziam a Saddam que poderiam realizar os projetos facilmente. Mais tarde, quando Saddam pedia informações atualizadas sobre os projetos inexistentes, eles simplesmente falsificavam planos e projetos. Esse fluxo constante de informação falsa sem dúvida explica por que tantos dos cálculos de Saddam sobre questões operacionais, estratégicas e políticas faziam sentido perfeito para ele. De acordo com Aziz, "as pessoas da Comissão Militar Industrial eram mentirosas. Elas mentiam para nós e mentiam para Saddam. Os integrantes da Comissão Militar Industrial não eram os únicos a mentir. Falsificar a verdade era especialmente comum entre as pessoas em que Saddam mais confiava em seu círculo mais próximo, especialmente nos casos em que uma notícia negativa poderia refletir mal sobre a capacidade ou reputação da pessoa que a transmitisse. Muitos relatórios eram falsificados. Os ministros se esforçavam para transmitir uma perspectiva positiva com seus relatórios. Dentro das Forças Armadas iraquianas e do regime iraquiano de modo geral circulavam rumores de que qualquer pessoa que ousasse contradizer o ditador corria o risco de execução sumária. Os oficiais recordavam a história do general que certa vez passou mais de um ano na prisão por ter ousado sugerir que os tanques americanos talvez fossem superiores aos do Exército iraquiano. Saddam confiava verdadeiramente em apenas uma pessoa: ele próprio. Por isso mesmo foi concentrando cada vez mais poder em suas próprias mãos. Mas nenhum homem isolado era capaz de fazer tudo. Obrigado a pedir ajuda a outros para tratar de detalhes operacionais, Saddam usava critérios de contratação esdrúxulos. Como observou um líder iraquiano, Saddam escolhia para cargos chaves pessoas "sem instrução, sem talento e que não representariam ameaça a sua liderança". Sempre atento para a possibilidade de um golpe de Estado, Saddam relutava em delegar autoridade militar a qualquer pessoa demasiado distante de sua própria família ou tribo.

Guerrilha
Boa parte da discussão sobre as origens da insurgência iraquiana no pós-guerra gira em torno de se o regime de Saddam guardou munições em diversos pontos do país para dar subsídio a uma futura guerra de guerrilha contra um inimigo externo. Não existem evidências documentais significativas que indiquem que isso aconteceu. O que está claro, porém, é que o regime ordenou a distribuição de munição, para preservá-la para uma guerra prolongada contra a coalizão. Pelo que pode ser determinado com base nas entrevistas e nos registros revistos até agora, não houve nenhum plano nacional para lançar uma guerra de guerrilha no caso de uma derrota militar. Foi apenas aos poucos que Saddam e aqueles que o cercavam finalmente pareceram dar-se conta de que estavam sofrendo uma derrota militar catastrófica. Nos derradeiros dias do regime, as únicas ações decisivas que a liderança pareceu capaz de empreender foram as tentativas de refrear o fluxo de más notícias. Por exemplo, um memorando do Ministério da Defesa datado de 6 de abril informou às unidades subordinadas: "Estamos nos saindo muito bem". Nesse momento, as forças militares iraquianas já haviam sucumbido ou estavam sucumbindo. Os ataques da coalizão haviam destruído quase todos os quartéis-generais. Segundo o vice-primeiro-ministro Aziz, nesse momento até mesmo Saddam finalmente aceitou que o final estava próximo. Naquele dia ele convocou uma reunião da liderança iraquiana numa casa na zona central de Bagdá. Durante a reunião, segundo Aziz, o tom de Saddam foi o de um homem "que perdera a disposição de resistir" e que "sabia que o regime estava chegando ao fim". Mais tarde, no mesmo dia, Saddam se deslocou para outro esconderijo a poucos quilômetros de distância (ele mudava de um local para outro a cada três a seis horas). Ali se reuniu com seu secretário pessoal, seus dois filhos, o ministro da Defesa e os chefes de Estado-Maior do Exército, da Guarda Republicana e dos Fedayeen de Saddam. Era quase meia-noite e, segundo os presentes, a combinação de alguns relatórios precisos enviados do campo de batalha e de transmissões de notícias via satélite do Ocidente finalmente tornara impossível que se ignorasse a situação difícil em que eles se encontravam. Mesmo assim, Saddam começou a dar ordens para que se deslocassem e manobrassem formações que já tinham deixado de existir. Na tarde do dia seguinte Saddam voltou a se reunir com seus assessores mais próximos e, segundo um participante na reunião, aceitou que "as divisões do Exército não são mais capazes de defender Bagdá e que ele teria um encontro com os comandantes regionais do Partido Baath para convocá-los para a defesa final do regime". Uma reunião subseqüente no mesmo dia resultou num plano não executado de dividir Bagdá em quatro quadrantes. Entretanto, no momento em que Saddam falava com seus comandantes militares, uma brigada blindada americana já havia capturado o aeroporto de Bagdá.


KEVIN WOODS é analista de defesa em Washington. JAMES LACEY é analista militar do Comando das Forças Conjuntas dos EUA. WILLIAMSON MURRAY é professor visitante emérito de história na Academia Naval dos EUA. Juntamente com Mark Stout e Michael Pease, eles foram os principais participantes no Projeto Perspectivas do Iraque do USJFCOM.

Tradução de CLARA ALLAIN


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