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Os delírios do ditador Saddam vistos de dentro
Relatos mostram que ex-líder iraquiano acreditava na resistência do regime à
invasão dos EUA
A QUEDA de Bagdá, em abril de 2003, abriu
para o escrutínio externo um dos governos
mais brutais da história. Estudo sobre documentos do alto escalão do governo iraquiano revelaram como o regime de Saddam Hussein
enfrentou a invasão do Iraque.
KEVIN WOODS, JAMES LACEY E
WILLIAMSON MURRAY
DA "FOREIGN AFFAIRS"
Durante anos de relativa paz
para o Iraque no cenário externo, após a operação Tempestade no Deserto, de 1991, Saddam
Hussein continuou a receber e
dar crédito a avaliações otimistas das perspectivas de seu regime, apresentadas por seus mais
altos oficiais militares. O vice-primeiro-ministro Tariq Aziz
descreveu o ditador como
"muito confiante" em que os
EUA não ousariam atacar o Iraque, e que, se o fizessem, seriam
derrotados. Qual foi a origem
da confiança de Saddam?
A julgar por suas declarações
particulares, o elemento que foi
mais importante, isoladamente, nos cálculos estratégicos de
Saddam foi sua confiança em
que a França e a Rússia impediriam uma possível invasão
americana. De acordo com
Aziz, a confiança de Saddam tinha raízes firmes em sua crença na ligação entre os interesses
econômicos da França e da
Rússia e as metas estratégicas
dele, Saddam.
O comandante do Exército e
do Estado-Maior iraquiano,
Ibrahim Ahmad Abd al Sattar,
declarou que Saddam acreditava que, mesmo que suas fontes
de apoio internacional falhassem e que os EUA de fato lançassem uma invasão terrestre,
Washington em pouco tempo
se dobraria à pressão internacional e suspenderia a guerra.
De acordo com seu intérprete pessoal, Saddam também
pensava que suas forças "superiores" oporiam "uma resistência heróica".
Invasão
Quando a invasão da coalizão
se concretizou, Saddam continuou a apegar-se obstinadamente à idéia de que os americanos se satisfariam com um
resultado que não chegasse à
mudança de regime. A convicção de Saddam de que seu regime sobreviveria à guerra foi a
razão primordial pela qual não
ordenou que suas forças ateassem fogo aos campos petrolíferos iraquianos nem abrissem as
comportas das barragens para
inundar o sul do país.
Alguns oficiais militares iraquianos de alto escalão não
compartilhavam as premissas
de seu líder, adotando uma visão mais pessimista. O diretor
de inteligência militar, Zuhayr
Talib Abd al Sattar al Naqib, comentou que, excetuando Saddam e o círculo mais estreito de
seus assessores, a maioria dos
iraquianos que tinham conhecimento da situação acreditava,
secretamente, que a guerra seguiria até virar uma ocupação.
O comandante do Primeiro
Corpo da Guarda Republicana
admitiu: "Depois que os americanos começassem, não haveria nada que poderia ser feito
para fazê-los parar".
No final de março de 2003,
Saddam, ao que tudo indica,
ainda acreditava que a guerra
estava tomando o rumo que ele
tinha previsto. Se o Iraque não
a estava vencendo, tampouco a
estava perdendo -ou, pelo menos, era assim que as coisas se
mostravam para o ditador.
Naquele ano, as forças armadas iraquianas estavam enfraquecidas em razão de 13 anos
de enfrentamentos quase contínuos com as forças aéreas dos
EUA e do Reino Unido, o efeito
cumulativo das sanções e impacto insidioso das políticas
disfuncionais seguidas pelo regime. A principal missão das
forças armadas iraquianas era
garantir a segurança interna da
ditadura baathista. Preocupadas com tudo, menos em travar
guerras, as forças iraquianas,
que no passado aspiravam a um
profissionalismo em estilo ocidental, passaram a focalizar
questões irrelevantes em termos militares, mas que, mesmo
assim, eram de vida ou morte.
Com relação às armas de destruição em massa (ADM), Saddam tentou convencer um público de que elas não existiam
mais e, ao mesmo tempo, levar
outro público a acreditar que o
Iraque ainda as possuía. Ser
transparente quanto às ADM e
colaborar plenamente com as
inspeções, de modo a evitar as
sanções, teria sido sua melhor
opção a longo prazo. Mas Saddam achou impossível abrir
mão da ilusão de possuir
ADMs, especialmente porque
elas funcionavam tão bem para
ele no mundo árabe.
No final de 2002, Saddam finalmente se inclinou a tentar
convencer a comunidade internacional de que o Iraque estava
cooperando com os inspetores
da ONU e de que o país não possuía mais programas de armas
de destruição em massa. Mas,
após anos de ocultação proposital da verdade, tornou-se difícil convencer qualquer parte
interessada de que o Iraque não
estava novamente sendo econômico com a verdade.
Sanções
Ainda outro fator veio reduzir a eficácia militar do Iraque:
as sanções. Durante mais de 12
anos, as sanções da ONU tinham enfraquecido as forças
armadas iraquianas, na medida
em que dificultaram a aquisição de novos equipamentos ou
mesmo peças e componentes,
além do financiamento de treinamento adequado. As tentativas de superar os efeitos das
sanções levaram Saddam a
criar a Comissão Militar Industrial, como meio de manter as
Forças Armadas. A comissão e
uma série de organizações subordinadas a ela foram regularmente prometendo novas capacidades para contrabalançar
os efeitos do treinamento insuficiente, moral baixo e equipamentos sem manutenção. Ao
que tudo indica, Saddam ficou
aguardando armas fantásticas
que pudessem reverter a erosão de sua força militar.
Um relatório anual da Comissão Militar Industrial sobre
investimentos feitos em 2002-03, documento esse obtido pelas forças americanas, listava
mais de 170 projetos de pesquisa, cujo orçamento estimado
chegava a aproximadamente
1,5% do PNB do Iraque. Um alto funcionário iraquiano afirmou que os líderes da comissão
tinham tanto medo de Saddam
que, quando ele lhes ordenava
que desenvolvessem programas de armas que eles sabiam
que o país não poderia levar
adiante, eles diziam a Saddam
que poderiam realizar os projetos facilmente. Mais tarde,
quando Saddam pedia informações atualizadas sobre os
projetos inexistentes, eles simplesmente falsificavam planos
e projetos.
Esse fluxo constante de informação falsa sem dúvida explica por que tantos dos cálculos de Saddam sobre questões
operacionais, estratégicas e políticas faziam sentido perfeito
para ele. De acordo com Aziz,
"as pessoas da Comissão Militar Industrial eram mentirosas.
Elas mentiam para nós e mentiam para Saddam.
Os integrantes da Comissão
Militar Industrial não eram os
únicos a mentir. Falsificar a
verdade era especialmente comum entre as pessoas em que
Saddam mais confiava em seu
círculo mais próximo, especialmente nos casos em que uma
notícia negativa poderia refletir mal sobre a capacidade ou
reputação da pessoa que a
transmitisse. Muitos relatórios
eram falsificados. Os ministros
se esforçavam para transmitir
uma perspectiva positiva com
seus relatórios.
Dentro das Forças Armadas
iraquianas e do regime iraquiano de modo geral circulavam
rumores de que qualquer pessoa que ousasse contradizer o
ditador corria o risco de execução sumária. Os oficiais recordavam a história do general que
certa vez passou mais de um
ano na prisão por ter ousado
sugerir que os tanques americanos talvez fossem superiores
aos do Exército iraquiano.
Saddam confiava verdadeiramente em apenas uma pessoa:
ele próprio. Por isso mesmo foi
concentrando cada vez mais
poder em suas próprias mãos.
Mas nenhum homem isolado
era capaz de fazer tudo. Obrigado a pedir ajuda a outros para
tratar de detalhes operacionais,
Saddam usava critérios de contratação esdrúxulos. Como observou um líder iraquiano, Saddam escolhia para cargos chaves pessoas "sem instrução,
sem talento e que não representariam ameaça a sua liderança". Sempre atento para a possibilidade de um golpe de
Estado, Saddam relutava em
delegar autoridade militar a
qualquer pessoa demasiado
distante de sua própria família
ou tribo.
Guerrilha
Boa parte da discussão sobre
as origens da insurgência iraquiana no pós-guerra gira em
torno de se o regime de Saddam
guardou munições em diversos
pontos do país para dar subsídio a uma futura guerra de
guerrilha contra um inimigo
externo. Não existem evidências documentais significativas
que indiquem que isso aconteceu. O que está claro, porém, é
que o regime ordenou a distribuição de munição, para preservá-la para uma guerra prolongada contra a coalizão.
Pelo que pode ser determinado com base nas entrevistas e
nos registros revistos até agora,
não houve nenhum plano nacional para lançar uma guerra
de guerrilha no caso de uma
derrota militar.
Foi apenas aos poucos que
Saddam e aqueles que o cercavam finalmente pareceram
dar-se conta de que estavam
sofrendo uma derrota militar
catastrófica. Nos derradeiros
dias do regime, as únicas ações
decisivas que a liderança pareceu capaz de empreender foram as tentativas de refrear o
fluxo de más notícias. Por
exemplo, um memorando do
Ministério da Defesa datado de
6 de abril informou às unidades
subordinadas: "Estamos nos
saindo muito bem". Nesse momento, as forças militares iraquianas já haviam sucumbido
ou estavam sucumbindo. Os
ataques da coalizão haviam
destruído quase todos os quartéis-generais.
Segundo o vice-primeiro-ministro Aziz, nesse momento até
mesmo Saddam finalmente
aceitou que o final estava próximo. Naquele dia ele convocou
uma reunião da liderança iraquiana numa casa na zona central de Bagdá. Durante a reunião, segundo Aziz, o tom de
Saddam foi o de um homem
"que perdera a disposição de
resistir" e que "sabia que o regime estava chegando ao fim".
Mais tarde, no mesmo dia, Saddam se deslocou para outro esconderijo a poucos quilômetros de distância (ele mudava
de um local para outro a cada
três a seis horas). Ali se reuniu
com seu secretário pessoal,
seus dois filhos, o ministro da
Defesa e os chefes de Estado-Maior do Exército, da Guarda
Republicana e dos Fedayeen de
Saddam. Era quase meia-noite
e, segundo os presentes, a combinação de alguns relatórios
precisos enviados do campo de
batalha e de transmissões de
notícias via satélite do Ocidente finalmente tornara impossível que se ignorasse a situação
difícil em que eles se encontravam. Mesmo assim, Saddam
começou a dar ordens para que
se deslocassem e manobrassem
formações que já tinham deixado de existir.
Na tarde do dia seguinte Saddam voltou a se reunir com
seus assessores mais próximos
e, segundo um participante na
reunião, aceitou que "as divisões do Exército não são mais
capazes de defender Bagdá e
que ele teria um encontro com
os comandantes regionais do
Partido Baath para convocá-los
para a defesa final do regime".
Uma reunião subseqüente no
mesmo dia resultou num plano
não executado de dividir Bagdá
em quatro quadrantes.
Entretanto, no momento em
que Saddam falava com seus
comandantes militares, uma
brigada blindada americana já
havia capturado o aeroporto de
Bagdá.
KEVIN WOODS é analista de defesa em Washington. JAMES LACEY é analista militar do Comando das Forças Conjuntas dos EUA. WILLIAMSON MURRAY é professor visitante emérito de história na Academia Naval dos EUA.
Juntamente com Mark Stout e Michael Pease,
eles foram os principais participantes no Projeto
Perspectivas do Iraque do USJFCOM.
Tradução de CLARA ALLAIN
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