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[+] EUA
>> Por Contardo Calligaris
Última hora
PELAS 9 da manhã de
segunda-feira, entrei
no DMV (equivalente
ao Detran) da rua 34 para renovar minha carteira de motorista. Esperando que meu
número fosse chamado, sentei ao lado de uma mulher entre 50 e 60 anos, branca, aparentemente de classe média.
Eu estava com todos os jornais do dia, mas o que aparecia em cima da pilha era o
"Wall Street Journal", que favorece a candidatura de
McCain.
A mulher me apostrofou
imediatamente, apontando
para as fotografias dos dois
candidatos na primeira página do jornal: "Eu soube de coisas que me deixam com medo.
Você sabia que ele não nasceu
nos Estados Unidos? E que
ninguém tem acesso a seu histórico escolar, que é completamente sigiloso?".
Por um momento, pensei,
honestamente, que a mulher
estivesse se referindo a
McCain e disse: "Sim, McCain
nasceu no Panamá, fora dos
EUA, e daí?".
A mulher, visivelmente
desconcertada: "McCain? No
Panamá?". Expliquei que, na
época em que o candidato republicano nasceu, seus pais
viviam na base naval americana no Panamá. A questão tinha sido levantada no começo
das primárias: visto que um
requisito da Presidência é que
ela seja ocupada por um cidadão nascido nos EUA, McCain
podia ou não ser presidente?
A mulher: "Isso de McCain
eu não sabia. Não, eu falava de
Obama". Eu: "Mas ele nasceu
no Havaí". A mulher: "Isso é o
que dizem, mas a certidão de
nascimento dele é falsa, nem
tem carimbo. De fato, ele nasceu no Quênia. E, além disso,
seus registros de estudante,
quando ele era amigo de terroristas, em Harvard, são inacessíveis". Eu: "Essa história
não me afeta muito... Sabe, a
gente conhece todo tipo de
pessoa na faculdade... De
qualquer forma, quero escolher alguém que coloque o interesse do país em primeiro
lugar". Usei essa expressão
("country first") de propósito,
por se tratar do lema da campanha de McCain.
A mulher: "Então você vai
votar em McCain. É ele que
coloca o país em primeiro lugar". Eu: "Não, vou votar em
Obama. McCain disse que colocaria o país em primeiro lugar e, aos 72 anos e com um
câncer diagnosticado, escolheu uma vice-presidente catastrófica e isso por razões puramente eleitoreiras, não por
interesse do país".
A mulher só acrescentou
"meu Deus", levantou e foi
embora, saiu para a rua, como
se, de fato, sua razão de estar
sentada ao meu lado fosse
nossa conversa fracassada, e
não a espera de alguma formalidade burocrática.
Pode ser que ela fosse só
uma eleitora atormentada e
confusa. Mas pode ser também que ela fosse, digamos assim, uma agitadora. Afinal,
mesmo na época da internet,
é possível inventar e propagar
um boato de maneira tradicional. E talvez seja eficiente:
imagine, na véspera da eleição, milhares de senhoras, cada uma das quais, em conversas "casuais", interpelaria 50
ou 100 pessoas, insinuando a
dúvida de que Obama poderia
ser um "estrangeiro", um africano "infiltrado".
Quis comprovar a teoria.
Sentei no Bryant Park, atrás
da biblioteca pública da cidade, no espaço a céu aberto
chamado Reading Room (sala
de leitura). Li o "Financial Times" e o "Washington Post".
Só conversou comigo um
sem-teto confuso e já bêbado
(ou se fingindo de bêbado, vai
saber). Se fosse um agitador,
difícil dizer a favor de quem: a
única coisa que repetiu com
insistência, apontando seu
dedo para uma fotografia de
Sarah Palin, era: "I tell you,
man, he fucks her, he fucks
her..." (te digo, cara, ele t...
com ela). Acho que "ele" devia
ser McCain, mas não garanto.
Há, na cidade (e, imagino,
no país), uma tensão: deve ser
a sensação (justificada) de
que amanhã, terça, acontecerá algo decisivo, junto com o
medo de que, no último momento, um desastre qualquer
comprometa o valor do processo.
Na tarde de segunda-feira,
em ruas quase desertas do
Brooklyn, descubro que, seja
qual for o resultado da eleição,
a imagem de Obama se confunde com grafites e pichações. Presidente ou não, ele é
um herói pop.
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