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ENTREVISTA
SPIKE LEE
Todos os sacrifícios agora fazem sentido
Cineasta retrata batalhão de negros na 2ª Guerra e diz que Obama redime seus heróis
EDUARDO GRAÇA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE NOVA YORK
Camisa branca de malha, óculos de aro multicolorido, é impossível não reconhecê-lo: lá está Spike Lee na
convenção do Partido Democrata que acaba de oficializar a candidatura à Presidência de Barack Obama.
Os olhos pequeninos miram a câmera confiantes e
anunciam, solenes: "A partir do dia 4 de novembro dividiremos a história de um modo diferente. Será antes de Obama (aO) e depois de Obama (dO)".
Se a possibilidade da eleição
de um negro à Casa Branca galvanizou a comunidade afro-americana, não poderia ser diferente com seu cineasta mais
representativo. A balbúrdia
eleitoral encontrou Lee, 51,
lançando seu primeiro filme
pela Disney.
"Milagre em Santana", uma
história romanceada do heróico batalhão formado por soldados negros durante a Segunda
Guerra Mundial, estreou nos
EUA em setembro, teve uma
recepção dura pela crítica, que
condenou a narrativa longa,
com mais de duas horas e meia
de duração, e chega aos cinemas brasileiros em fevereiro.
Foi no escritório da companhia mais famosa por seus desenhos animados e dramas voltados para a família que o diretor de "Malcom X" conversou
com a imprensa sobre seu novo
filme, as mutações do racismo
nos EUA e, claro, a candidatura
Obama. O senador de Illinois
costuma contar com orgulho
que em sua primeira ida ao cinema ao lado da então namorada, Michelle, os dois se maravilharam com "Faça A Coisa Certa", de Spike Lee.
Em "Milagre em Santana", o
diretor segue interessado na
maneira como as minorias são
retratadas por aqueles que se
aventuram em contar a história
dos EUA na tela grande. Natural de Atlanta, Geórgia, Lee bate na madeira três vezes sempre que se menciona a possibilidade do democrata terminar a
noite de hoje como o novo presidente do país. É que, por aqui,
lembra o professor de cinema
da Universidade de Nova Iorque (NYU), nunca é demais pedir a proteção do sobrenatural
em momentos de mudanças
tão radicais.
FOLHA - "Milagre em Santana"
conta a história de quatro soldados
negros e uma das cenas mais fortes
é aquela em que eles percebem serem mais reconhecidos como cidadãos na Itália liberta do que nos EUA
de Jim Crow [leis segregacionistas]...
SPIKE LEE - Os negros que se alistaram para lutar por seu país
em 1944 encontraram as forças
armadas norte-americanas
completamente segregadas.
Linchamentos ainda eram comuns. Eles eram considerados
cidadãos de segunda classe.
Nós improvisamos bastante,
mas uma frase que se repetia na
conversa com os veteranos é a
de que eles "se sentiram mais
em casa na Itália do que jamais
haviam se sentido nos EUA".
Aliás algo que James Baldwin,
Josephine Baker e Miles Davis
afirmaram sentir também.
FOLHA - O que o sr. descobriu sobre
os homens do Buffalo Soldiers, o primeiro batalhão de negros do Exército americano?
LEE - Conheci vários veteranos
do 92º Batalhão de Infantaria.
São heróis americanos, grandes
patriotas, que tinham todos os
motivos para serem mais amargos pela maneira com que os
EUA os trataram, mas que estão felicíssimos, pois jamais
imaginaram que um dia poderiam votar em Barack Obama
para a Presidência desta República que é deles também. Há,
para eles, mais do que nunca, a
certeza de que todos os sacrifícios que fizeram fazem um
enorme sentido.
FOLHA - Estes soldados negros voltaram para um EUA ainda segregado, especialmente no sul do país...
LEE - Sim, e eu mesmo cresci
no Brooklyn vendo filmes de
guerra e tudo o que via era John
Wayne. Só soube dos Buffalo
Soldiers porque meu pai e
meus irmãos ouviam e contavam histórias de amigos motoristas de caminhão que haviam
sido voluntários negros da Segunda Guerra e transportaram
munição até Berlim, dirigindo à
noite, sem luz, escondidos, para
ajudar na derrocada final de
Hitler. Aliás, você sabia disso?
Não, né? Outro fato que poucos
sabem é que boa parte dos alemães capturados foi mandada
para o sul do país, onde dividiram espaço com soldados negros.
FOLHA - O que remete à cena da
lanchonete no filme...
LEE - Exato. Pense nesses jovens negros que se alistaram e
eram treinados para matar nazistas e viam os brancos alemães recebendo melhor comida, tratamento médico e alojamento do que eles. Este fato
histórico é uma insanidade total. Por isso resolvi incluir a cena em que os alemães são mais
bem tratados do que os negros
em uma lanchonete na Louisiana. O que me interessa é a formação da mitologia da guerra
que no cinema. Por exemplo,
ninguém fala dos fuzileiros navais negros de Iwo Jima, que
ajudaram a derrotar o Japão. E
isso não aconteceu há tanto
tempo assim!
Mas graças a Deus os EUA
progrediram muito nestas seis
décadas e Obama é a maior evidência dessa evolução. Sinceramente, eu jamais pensei que veria um negro na iminência de se
tornar o 44º presidente dos
EUA. E algo me diz que isso vai
acontecer hoje.
FOLHA - Já que falamos de tempos
outros, o sr. acredita que a realidade
do soldado negro americano é diferente em desafios mais recentes, como a ocupação do Iraque?
LEE - A maioria do Exército
americano é, hoje, formada por
negros e hispânicos. Mas é preciso lembrar que a experiência
da guerra não muda por conta
de diferenças étnicas. Não importa quem você seja, a experiência é avassaladora. Basta
ver o número de suicídios dos
jovens que lutaram no Iraque e
no Afeganistão. É astronômico.
E os que se matam depois de
voltar? Você já viu a quantidade
que acaba envolvida em agressões contra mulheres, maridos
e familiares? Nossas Forças Armadas estão mal-equipadas, e é
uma desgraça nacional o fato de
não estarmos tratando desses
veteranos que se propuseram a
dar suas vidas pelo país com a
dignidade que eles merecem.
FOLHA - O sr. teve dificuldades em
conseguir financiamento para terminar "Milagre em Santana", que
acabou sendo feito com algo como
US$ 45 milhões, um orçamento pequeno para um filme de guerra.
Houve quem creditasse a escassez
de fundos justamente a seu conflito
com Clint Eastwood, já que o sr. foi
enfático na crítica tanto a "Cartas de
Iwo Jima" quanto a "A Conquista da
Honra", duas histórias sobre a Segunda Guerra Mundial em que não
há destaque na tela para sequer um
soldado negro (Eastwood, um dos
poucos simpatizantes do Partido Republicano em Hollywood, respondeu que Lee deveria se calar e o cineasta negro continuou a polêmica,
dizendo que os tempos das grandes
plantações, em que a escravidão determinava quem tinha o direito à
voz, já havia terminado)...
LEE - Isso não é verdade. Não
mesmo! As declarações que fiz
sobre os dois filmes dele sobre a
guerra foram feitas em maio,
em Cannes. Havia terminado
de filmar "Milagre" em janeiro.
E, olha, você tem de fazer cinema com o que tem. Adoraria ter
mais de US$ 100 milhões. Mas
não tive. Em "Ela Quer Tudo",
de 1986, filmei com US$ 175
mil. Quando estávamos filmando, criamos uma cofrinho de
moedas e foi assim que conseguimos comprar dois rolos de
filme para terminar as filmagens. As coisas não mudaram
tanto assim. Você tem de ser
um lutador para ser um cineasta. Se não tem a tendência para
a luta, então este não é seu
meio. Ainda estou esperando,
por exemplo, o financiamento
para a biografia de James
Brown que quero fazer.
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