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"Eleição afegã é fracasso enorme da ONU"
Ex-sub das Nações Unidas no país, Peter Galbraith apoia decisão de opositor de desistir de um 2º turno "que não teria credibilidade"
Diplomata, afastado do cargo após criticar atuação do organismo no 1º turno, diz que, ilegítimo, Karzai fará 2º governo ainda pior
Rahmat Gul/Associated Press
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Afegãos celebram em Jalalabad a proclamação da vitória de Hamid Karzai, após o cancelamento do segundo turno da eleição
ANDREA MURTA
DA REDAÇÃO
Após uma reeleição fraudulenta, foi com ceticismo que
boa parte do mundo ouviu o
presidente afegão Hamid Karzai se comprometer ontem, em
seu primeiro pronunciamento
após a vitória, a combater a corrupção no país. Para Peter Galbraith, ex-número dois das Nações Unidas no Afeganistão, a
fala do "mestre das promessas
não cumpridas" foi também o
prenúncio de "mais do mesmo": um mandato infestado de
"corrupção e ineficiência", conquistado em um processo que
ele classifica como "enorme
fracasso" para a ONU.
O americano Galbraith, que
foi demitido em 30 de setembro após acusar a ONU de ignorar intencionalmente as fraudes no pleito, afirma que o cancelamento do segundo turno
-decidido após a desistência
do postulante Abdullah Abdullah- foi a melhor opção, já que
não valeria a pena arriscar a vida de organizadores por uma
eleição já sem credibilidade.
A ONU afirma que o diplomata foi afastado por "choque
de personalidade" com seu superior, o norueguês Kai Eide.
Mas ao falar com a Folha, por
telefone, antes de embarcar para a Coreia do Sul, Galbraith
contra-atacou e disse que a
eleição corroeu a credibilidade
das Nações Unidas dentro e fora do Afeganistão.
FOLHA - Qual foi a reação do sr. à
retirada de [o rival de Karzai] Abdullah Abdullah da disputa e ao cancelamento do segundo turno?
PETER GALBRAITH - Dadas as circunstâncias, foi a melhor decisão. Já estava óbvio que não haveria um processo justo -isso
foi demonstrado pela atitude
da Comissão Eleitoral Independente [ligada a Karzai] de
aumentar, em vez de diminuir,
postos de votação do segundo
turno [como recomendado pela ONU para evitar fraudes]. A
legitimidade da eleição já estava completamente comprometida após o primeiro turno por
causa dessas fraudes. Não fazia
sentido arriscar a vida de organizadores por um processo que
não teria credibilidade.
FOLHA - Mas a saída de Abdullah
não torna a vitória de Karzai ainda
menos legítima?
GALBRAITH - Sim, mas isso ocorreria de toda forma. O resultado do primeiro turno foi muito
mais apertado do que os resultados oficiais mostraram. Abdullah conseguiu provavelmente entre 31% e 34% dos votos. Mas como a recontagem só
foi feita até o ponto em que um
segundo turno se tornou obrigatório, esse número nunca foi
finalizado. Diante disso, Abdullah tomou uma atitude coerente ao desistir da disputa.
FOLHA - Qual o efeito desse fracasso para a ONU? A organização tinha
poder para agir diferentemente?
GALBRAITH - Claro que a credibilidade da ONU foi muito afetada, dentro e fora do Afeganistão. Muitas pessoas estão saindo de lá -inclusive alguns de
nossos melhores funcionários,
a maior parte como resposta à
minha remoção. Foi um enorme, enorme fracasso para a
ONU. Poderíamos ter feito as
coisas de outra forma, como eu
tentei fazer em julho. Já então
eu tentava diminuir o número
de seções eleitorais, quando
meu superior estava de férias.
Mas ao voltar ele disse que não
poderíamos mexer no número
de seções. A ONU tinha o apoio
das potências, estava pagando
pelas eleições. Mas quando não
agimos diante da óbvia participação da CEI [Comissão Eleitoral Independente] nas fraudes, para os funcionários da
ONU o pleito virou uma piada.
FOLHA - O que podemos esperar
do próximo mandato de Karzai?
GALBRAITH - Mais do mesmo, só
que pior: a corrupção está lá, a
ineficiência está lá, só que agora ele é considerado ilegítimo
por boa parte dos afegãos.
FOLHA - Karzai afirmou ontem que
em vez de substituir membros do
governo para combater a corrupção,
pretende revisar leis. É suficiente?
GALBRAITH - [risos] Esse cara é o
mestre das promessas não
cumpridas. Não é crível, são só
mais promessas, novas leis que
não são obedecidas, as mesmas
pessoas corruptas no poder.
FOLHA - O sr. vê um lugar para Abdullah Abdullah no novo governo?
GALBRAITH - Duvido muito que
ele queira um lugar. Não acredito que tenha havido acordo
com o governo Karzai nos bastidores para que ele concordasse em sair. Pode até ser que a
ONU queira um desfecho desses, mas Abdullah não fará isso.
Ele continuará a ter um papel
como opositor. Mas a situação
no país deve se deteriorar.
FOLHA - O que deveria ser feito
agora para estabilizar o país?
GALBRAITH - O Afeganistão precisa urgentemente de uma revisão constitucional. O sistema
político é totalmente inapropriado e não funciona. O vencedor leva tudo, e teoricamente a
maior parte do poder está concentrada nas mãos do presidente. O sistema de governo é
altamente centralizado, em um
dos países mais geograficamente diversos do mundo. O que
Abdullah propôs, e que eu acho
que faz sentido, é deixar o Parlamento escolher o gabinete de
ministros e a criar o posto de
primeiro-ministro, com um
processo de negociações em
que todos os grupos étnicos dividam o poder. Também teríamos de aumentar o poder das
Províncias, com governadores
eleitos com autoridade legislativa, fiscal e orçamentária. Mas
eu não acredito que algo assim
será realizado.
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