São Paulo, quarta-feira, 04 de novembro de 2009

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"Eleição afegã é fracasso enorme da ONU"

Ex-sub das Nações Unidas no país, Peter Galbraith apoia decisão de opositor de desistir de um 2º turno "que não teria credibilidade"

Diplomata, afastado do cargo após criticar atuação do organismo no 1º turno, diz que, ilegítimo, Karzai fará 2º governo ainda pior

Rahmat Gul/Associated Press
Afegãos celebram em Jalalabad a proclamação da vitória de Hamid Karzai, após o cancelamento do segundo turno da eleição

ANDREA MURTA
DA REDAÇÃO

Após uma reeleição fraudulenta, foi com ceticismo que boa parte do mundo ouviu o presidente afegão Hamid Karzai se comprometer ontem, em seu primeiro pronunciamento após a vitória, a combater a corrupção no país. Para Peter Galbraith, ex-número dois das Nações Unidas no Afeganistão, a fala do "mestre das promessas não cumpridas" foi também o prenúncio de "mais do mesmo": um mandato infestado de "corrupção e ineficiência", conquistado em um processo que ele classifica como "enorme fracasso" para a ONU.
O americano Galbraith, que foi demitido em 30 de setembro após acusar a ONU de ignorar intencionalmente as fraudes no pleito, afirma que o cancelamento do segundo turno -decidido após a desistência do postulante Abdullah Abdullah- foi a melhor opção, já que não valeria a pena arriscar a vida de organizadores por uma eleição já sem credibilidade.
A ONU afirma que o diplomata foi afastado por "choque de personalidade" com seu superior, o norueguês Kai Eide. Mas ao falar com a Folha, por telefone, antes de embarcar para a Coreia do Sul, Galbraith contra-atacou e disse que a eleição corroeu a credibilidade das Nações Unidas dentro e fora do Afeganistão.

 

FOLHA - Qual foi a reação do sr. à retirada de [o rival de Karzai] Abdullah Abdullah da disputa e ao cancelamento do segundo turno?
PETER GALBRAITH -
Dadas as circunstâncias, foi a melhor decisão. Já estava óbvio que não haveria um processo justo -isso foi demonstrado pela atitude da Comissão Eleitoral Independente [ligada a Karzai] de aumentar, em vez de diminuir, postos de votação do segundo turno [como recomendado pela ONU para evitar fraudes]. A legitimidade da eleição já estava completamente comprometida após o primeiro turno por causa dessas fraudes. Não fazia sentido arriscar a vida de organizadores por um processo que não teria credibilidade.

FOLHA - Mas a saída de Abdullah não torna a vitória de Karzai ainda menos legítima?
GALBRAITH -
Sim, mas isso ocorreria de toda forma. O resultado do primeiro turno foi muito mais apertado do que os resultados oficiais mostraram. Abdullah conseguiu provavelmente entre 31% e 34% dos votos. Mas como a recontagem só foi feita até o ponto em que um segundo turno se tornou obrigatório, esse número nunca foi finalizado. Diante disso, Abdullah tomou uma atitude coerente ao desistir da disputa.

FOLHA - Qual o efeito desse fracasso para a ONU? A organização tinha poder para agir diferentemente?
GALBRAITH -
Claro que a credibilidade da ONU foi muito afetada, dentro e fora do Afeganistão. Muitas pessoas estão saindo de lá -inclusive alguns de nossos melhores funcionários, a maior parte como resposta à minha remoção. Foi um enorme, enorme fracasso para a ONU. Poderíamos ter feito as coisas de outra forma, como eu tentei fazer em julho. Já então eu tentava diminuir o número de seções eleitorais, quando meu superior estava de férias.
Mas ao voltar ele disse que não poderíamos mexer no número de seções. A ONU tinha o apoio das potências, estava pagando pelas eleições. Mas quando não agimos diante da óbvia participação da CEI [Comissão Eleitoral Independente] nas fraudes, para os funcionários da ONU o pleito virou uma piada.

FOLHA - O que podemos esperar do próximo mandato de Karzai?
GALBRAITH -
Mais do mesmo, só que pior: a corrupção está lá, a ineficiência está lá, só que agora ele é considerado ilegítimo por boa parte dos afegãos.

FOLHA - Karzai afirmou ontem que em vez de substituir membros do governo para combater a corrupção, pretende revisar leis. É suficiente?
GALBRAITH -
[risos] Esse cara é o mestre das promessas não cumpridas. Não é crível, são só mais promessas, novas leis que não são obedecidas, as mesmas pessoas corruptas no poder.

FOLHA - O sr. vê um lugar para Abdullah Abdullah no novo governo?
GALBRAITH -
Duvido muito que ele queira um lugar. Não acredito que tenha havido acordo com o governo Karzai nos bastidores para que ele concordasse em sair. Pode até ser que a ONU queira um desfecho desses, mas Abdullah não fará isso. Ele continuará a ter um papel como opositor. Mas a situação no país deve se deteriorar.

FOLHA - O que deveria ser feito agora para estabilizar o país?
GALBRAITH -
O Afeganistão precisa urgentemente de uma revisão constitucional. O sistema político é totalmente inapropriado e não funciona. O vencedor leva tudo, e teoricamente a maior parte do poder está concentrada nas mãos do presidente. O sistema de governo é altamente centralizado, em um dos países mais geograficamente diversos do mundo. O que Abdullah propôs, e que eu acho que faz sentido, é deixar o Parlamento escolher o gabinete de ministros e a criar o posto de primeiro-ministro, com um processo de negociações em que todos os grupos étnicos dividam o poder. Também teríamos de aumentar o poder das Províncias, com governadores eleitos com autoridade legislativa, fiscal e orçamentária. Mas eu não acredito que algo assim será realizado.


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