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Brasil celebra antropólogo, mas esquece lição política
"Orgulho" por laços entre o intelectual e o país não incluiu seus "mestres" locais, os índios
Lévi-Strauss participou da criação da USP; experiência brasileira e mitos locais foram fundamentais para concepção de suas ideias
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Claude Lévi-Strauss é, entre
os grandes intelectuais do século 20, talvez um dos nomes
mais conhecidos no Brasil,
mesmo por pessoas que nunca
chegaram a ler um parágrafo
que tenha sido escrito pelo "pai
do estruturalismo".
Além de nome familiar, quase todo brasileiro que tenha
terminado algum curso universitário sabe que o antropólogo
participou do grupo de professores franceses que ajudou a
criar, nos anos 30, a Universidade de São Paulo, símbolo de
certa modernidade brasileira e
ainda hoje a melhor instituição
de ensino e pesquisa no país.
Não são essas as únicas razões que fizeram esse intelectual francês, nascido na Bélgica, se tornar, curiosamente,
uma espécie de "orgulho nacional" brasileiro. Como se sabe, o
contato de Lévi-Strauss com
diferentes populações indígenas do país, em expedições ao
então "remoto" oeste brasileiro
na segunda metade da década
de 1930, forneceram material
rico, "bom para pensar", que
contribuiria decisivamente para sua obra futura.
E são também narrativas míticas recolhidas por outros autores em grupos "brasileiros",
entre eles os bororos, que já haviam sido visitados pelo antropólogo em Mato Grosso, que
dão o pontapé inicial e perpassam toda a sua obra maior, as
"Mitológicas", quatro volumes
sobre a lógica do pensamento
ameríndio, em particular, e sobre as próprias condições do
pensar, de modo geral.
Cegueira
Como se vê, Lévi-Strauss
aprendeu muito com o Brasil, e
era razoável que isso terminasse sendo utilizado de forma
provinciana, dirão alguns, ou
como elemento de uma saudável autoestima, dirão outros. O
interessante é que essa lógica
narcisista, essa reiterada associação entre o antropólogo e o
país depende de um constante
esquecimento, uma cegueira
mesmo, sobre o que ele de fato
escreveu sobre nós, e sobre o
que, exatamente, somos esse
"nós" (os brasileiros).
Esse "Brasil" com que tanto
aprendeu Lévi-Strauss é constituído justamente pelos brasileiros que, ao longo de todo o
século 20, o país teimou em esconjurar, em negar -o Brasil
das dezenas de grupos indígenas que não desapareceram e
que, pesquisas demográficas
recentes demostram, voltou a
crescer e está aí para ficar.
Enquanto Lévi-Strauss utilizava as preciosas lições que
aprendera com grupos indígenas do cerrado e da Amazônia
brasileira (sobre outros modos
de relacionar natureza e cultura, diferentes concepções metafísicas, lógicas de organização
social) para criar um dos pensamentos mais influentes da segunda metade do século 20, a
maioria dos brasileiros olhava
para os "mestres" do antropólogo como um símbolo de atraso a ser superado ou esquecido,
um motivo de vergonha fadado
felizmente (eles acreditavam) a
desaparecer.
Ao mesmo tempo em que valorizava esse Brasil de que os
próprios brasileiros se envergonhavam -Lévi-Strauss pode
ser descrito como "carinhoso"
ao falar de povos como os nambiquara e os bororo-, o antropólogo foi duro, em alguns momentos implacável, ao apresentar suas impressões sobre a
sociedade brasileira urbana,
envolta em sua permanente
disputa por status.
Para os estudantes da USP
recém montada, escreve Lévi-Strauss em "Tristes Trópicos",
"ideias e doutrinas não ofereciam [...] um interesse intrínseco, consideravam-nas como
instrumentos de prestígio cujas primícias deviam conseguir". "Partilhar uma teoria conhecida com outros equivalia a
usar um vestido já visto."
Se uma teoria europeia "antiga" já não valia nada nesse gosto vulgar pelo "moderno", utilizado como signo de prestígio,
que dizer dos povos indígenas e
suas ideias?
Se, em regra, as coisas não
são muito diferentes hoje, é
justo notar que foi exatamente
no ramo da antropologia, fortemente influenciada por Lévi-Strauss mesmo quando esse
autor estava "em baixa", nas últimas décadas, que a academia
brasileira conseguiu formar alguns dos seus principais pensadores -nomes como Manuela
Carneiro da Cunha e Eduardo
Viveiros de Castro-, reconhecidos hoje entre os principais
cientistas sociais em atividade
no mundo.
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