São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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SAÚDE

Para ativista contrário ao antitabagismo, governo ignora que opção de fumantes é consciente e visa proibição total

Cruzada antifumo ganha oposição nos EUA

LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO

Duas semanas atrás, a cartunista Marjane Satrapi dedicou sua coluna no jornal "The New York Times" a um de seus maiores prazeres: fumar. Sob o título de "Não quero parar de fumar", ela elencou os riscos do cigarro, interpondo questões como "Eu quero ser velha por 60 anos e viver até os 130? Não!". Recebeu três vezes mais correspondência do que quando comentou o terrorismo, a condição de Israel ou os tumultos na França. A maioria absoluta expressando pena ou indignação por ela não se abalar diante de um horizonte (possível, mas não certo) de câncer e outros males fatais.
A reação a Satrapi -uma mulher jovem, reconhecidamente talentosa e informada- dá a medida da cruzada antifumo nos EUA.
Por lá, comerciais de cigarro pedem aos fumantes que abandonem o vício, temperaturas abaixo de zero encontram grupos a soltar baforadas do lado de fora de bares e, dependendo de onde estejam, nem a rua mais é lugar para tragadas. San Francisco vetou o cigarro em parques públicos, e o Estado de Washington, nas ruas se estiver a menos de oito metros de uma entrada de ar de um prédio onde o fumo é proibido.
É contra esse tipo de reação que se levantou o colunista político Jacob Sullum, autor de "Para o Seu Próprio Bem: A Cruzada Antifumo e a Tirania da Saúde Pública". Estudioso de legislação e políticas públicas, Sullum argumenta no livro e em artigos em jornais como o "Times" e o "Wall Street Journal" que o governo, ao traçar suas políticas de saúde, não leva em conta que os fumantes escolhem o cigarro dispostos a arcar com seus riscos, ainda que fatais.


Há quem ache que vale trocar alguns anos de vida por prazer e alívio de estresse. A opção é racional


Para ele, a defesa da saúde dos não-fumantes, alegada para impor as proibições, é fachada, já que os estudos sobre fumantes passivos têm como objeto gente exposta a fumaça horas por dia, não quem passa três horas da semana em um bar enfumaçado. A meta, crê, é reduzir o número de fumantes até o ponto em que proibir o cigarro não cause alarde.
Leia os principais trechos da entrevista que ele concedeu à Folha por telefone. Em tempo: nem Sullum nem esta repórter fumam.

Folha - Como o sr. descreve o antitabagismo nos EUA hoje?
Jacob Sullum -
Os fumantes são só 21% da população adulta hoje, e a maior parte das pessoas que não fumam não gosta de ficar perto da fumaça. Pois agora eles podem dizer não só que a fumaça é irritante, como também que ela pode matá-los. Para a maioria das pessoas, não é uma preocupação real -o que eles não gostam é do efeito imediato. Só que, se você lhes disser que a fumaça alheia pode matá-los, mesmo que eles não acreditem nisso, usarão essa alegação para legitimar sua queixa e justificar o envolvimento do governo.

Folha - O sr. acha então que os fumantes passivos não estejam preocupados com o risco à sua saúde?
Sullum -
Acredito que essa não seja uma grande preocupação, pois o risco, se existe, é muito pequeno e associado a uma exposição a longo prazo. Os estudos já feitos têm como objeto gente que convive com a fumaça por décadas dentro de casa.
Claro que o risco à saúde entra na retórica, mas não é o que mais pesa. Já a motivação das autoridades da saúde não é proteger os não-fumantes, é obrigar as pessoas a pararem de fumar.

Folha - Embora os riscos do fumo sejam conhecidos há décadas, o antitabagismo ganhou força só mais recentemente. Por quê?
Sullum -
Inicialmente, a expectativa era que, uma vez que o risco à saúde fosse conhecido e compreendido, as pessoas parariam de fumar. Pois muita gente parou ou nem começou -a proporção de fumantes caiu para a metade desde os anos 60. Mas sobrou outro grupo, não tão focado nos danos no longo prazo, e sim nos benefícios imediatos de fumar.

Folha - O sr. acha que eles estão bem informados sobre os riscos?
Sullum -
Sim, certamente. O que os ativistas e as autoridades da saúde dizem é que, se você opta por continuar fumando mesmo sabendo do risco, há algo errado com você. E aí eles querem obrigá-lo a tomar a decisão certa. É por isso que você vê medidas cada vez mais coercivas, como o aumento dos impostos sobre o cigarro e as proibições de fumar.


As religiões tradicionais começaram a perder espaço, e o culto à saúde passou a substituí-las


O objetivo primário das pessoas que as defendem é obrigar os fumantes a parar de fumar. Fica tão difícil fumar que é complicado manter o vício. Se você analisar os benefícios que essas proibições trazem à saúde pública, você verá que a imensa maioria deles não diz respeito aos fumantes passivos, mas à queda do número de fumantes. Ficou tão difícil fumar que muitos desistiram.

Folha - Qual seria uma política pública razoável?
Sullum -
Uma que tolerasse a possibilidade de que alguém, mesmo sabendo que o cigarro faz mal para sua saúde, queira continuar fumando. Deve caber ao dono dos locais decidir se seus empregados ou clientes podem fumar ali. Se eles decidirem que sim, muita gente pode não gostar, mas aí essas pessoas procurarão um lugar sem fumantes, ou, no caso de funcionários, exigirão compensações para trabalhar lá.

Folha - Hoje muitas empresas de cigarro nos EUA fazem campanhas para que o público pare de fumar...
Sullum -
É a nova cara da indústria do cigarro: "Não comprem nosso produto". Estão tentando melhorar sua imagem, compensar por não terem sido claros o suficiente sobre os riscos no passado. E, principalmente, afinal perceberam que quem fuma conhece os riscos e não se importa.

Folha - Elas ainda são alvo de muitos processos?
Sullum -
Elas fecharam acordos em todos os processos estaduais [em 1998, as secretarias da Justiça dos Estados e a indústria tabagista fixaram normas, multas e taxas para o setor em troca de serem encerrados os processos que corriam]. Com isso, mais de US$ 40 bilhões por ano vão da indústria para os Estados, tornando-os parceiros. Isso basicamente é pago pelos fumantes, que pagam mais pelo cigarro.
Já no nível federal tem um processo que está perto de terminar, no qual primeiro tentaram processar a indústria por um valor tão alto que a quebraria, mas não funcionou. Agora, caso o juiz decida a favor do governo, algumas restrições vão ser impostas. A idéia básica é que a indústria tabagista violenta seus consumidores, então o processo quer evitar que ela continue extorquindo-os.

Folha - Até que ponto a culpa é da indústria, cujo ramo é legal?
Sullum -
Muita coisa que a indústria fez foi desonesta, mas a questão é que os riscos são tão conhecidos e há tanto tempo que é difícil dizer que a indústria tenha enganado alguém. É por isso que fumantes com processos individuais não ganharam um caso em 40 anos. Só recentemente é que isso começou a mudar.

Folha - Por que não proibir?
Sullum -
Acho que uma hora ou outra isso vai acontecer. Uma vez que o número de fumantes caia para o que o governo considere manejável, o tabaco será uma droga do tipo contra o qual o governo faz guerra. Não será logo, mas em um dado tempo o número de fumantes será baixo o suficiente para tornar os efeitos negativos de uma proibição toleráveis.

Folha - Com tanta proibição, imposto e multa, a indústria lucra?
Sullum -
Sim. O acordo com os Estados foi bom para elas, pois envolve um sistema que as protege da competição -cria penas para as pequenas empresas que tentam entrar no mercado, e as grandes podem subir seus preços. E, nesse momento, a Phillip Morris [maior fabricante de cigarros dos EUA] quer que a FDA [reguladora de alimentos e remédios] regulamente o tabaco. Eles acham que conseguirão produzir cigarros menos danosos, e com isso ganharão mais dinheiro. Mas para tanto precisam de um selo de aprovação do governo.

Folha - Em que momento o cigarro se tornou um vilão nos EUA?
Sullum -
Nos anos 60, e desde então só piorou. Não que ninguém soubesse que fosse ruim, mas foi aí que o risco foi documentado e divulgado. Ao mesmo tempo, as pessoas começaram a desenvolver essa expectativa de viver mais. As religiões tradicionais começaram a perder espaço, e as pessoas passaram a cultuar a saúde como antes abraçavam a religião. É uma crença de que, se algo é bom para a saúde e aumentará seu tempo de vida, você deve fazer, e tudo que pode fazer você viver menos deve ser banido. É esse o pensamento dos ativistas e das autoridades de saúde.

Folha - O sr. acha que é exagero?
Sullum -
É um julgamento válido, mas há quem ache que vale a pena trocar alguns anos da sua vida por outras coisas, como prazer e alívio de estresse. Trata-se de uma escolha racional, mas o problema é que algumas pessoas acham que isso não possa ser racional. As pessoas começaram a dar como certa essa vida mais longeva, e aí a possibilidade de você viver menos do que se espera virou uma tragédia. Ao mesmo tempo em que fumar saiu de moda, as pessoas também começaram a fazer dieta, ir à academia -coisas que aumentam a expectativa de vida. A saúde virou o maior dos valores.

Folha - O sr. fuma?
Sullum -
Não fumo cigarro. De vez em quando, fumo cachimbo.


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