São Paulo, sábado, 05 de março de 2011

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Escola de rebeldes

Por ordem de Gaddafi, colégios públicos locais adotaram treinamento militar, criando a geração que se volta contra ele

MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A BREGA (LÍBIA)

Em uma manhã de 1979, quando Tarek Latiwesh tinha 13 anos, um oficial do Exército líbio entrou em sua sala de aula e anunciou: a partir desta semana, preparem-se para aprender a atirar.
Durante o semestre inteiro, Latiwesh e outros 30 meninos de sua turma alternaram as lições de geografia, matemática, biologia e outras do currículo tradicional, com o treinamento militar.
Por determinação do coronel Muammar Gaddafi, todas as escolas públicas da Líbia adotaram a disciplina no currículo, formando duas geração de atiradores que hoje se voltam contra ele.
"Gaddafi queria um Exército do povo e, por isso, achava que todos os líderes tinham que aprender a ser soldados desde cedo", afirma Latiwesh. "Agora, o povo está contra ele, e as armas também", completa.
Engenheiro civil em Benghazi, a cidade do leste líbio que virou a capital dos rebeldes, Latiwesh largou tudo quando começaram os protestos contra o ditador.
Comprou um fuzil Kalashnikov por 2.000 dinares (R$ 2.700) no mercado negro e se juntou ao levante. Ontem, arma em punho, fazia guarda da estratégica cidade portuária de Brega, por onde escoa boa parte da exportação de petróleo do país.
"Aprendi tudo sobre Kalashnikov na escola. Agora foi só relembrar", diz o engenheiro, que espera passar pouco tempo como soldado. "Quando Gaddafi estiver liquidado, prometo entregar minha arma ao Exército."
Assim como ele, milhares de civis que tomaram boa parte do território líbio nas últimas semanas estão colocando em prática pela primeira vez o treinamento militar recebido ainda no tempo de escola.

ÚLTIMA GERAÇÃO
A ordem valeu até três anos atrás, quando Gaddafi desmantelou as Forças Armadas do país e as dividiu em unidades sob comando dos filhos e aliados tribais.
Ali Youssef, 22, estudante universitário do segundo ano de engenharia elétrica, faz parte da última geração que combinou cadernos com armas na sala de aula.
Aos 16 anos, aprendeu a disparar fuzis Kalashnikov e também a manejar artilharia pesada. Seus professores nunca deixaram claro quem era o inimigo, mas a paranoia com uma possível invasão de potências do Ocidente era mantida no ar.
"Eu era o melhor atirador da minha turma", orgulha-se Youssef, de óculos de sol estilo aviador, camisa militar camuflada e o indefectível fuzil russo no ombro. "Se Gaddafi passar por aqui hoje, garanto que acerto com um único tiro", afirma.
No auge de seu plano de militarizar a juventude líbia, Gaddafi chegou a ordenar que houvesse treinamentos nos três anos do ensino fundamental. A cada ano, os estudantes ganhavam patentes militares, de acordo com seus progressos.
Maray Elkeseh, gerente do único hotel de Ajdabiyah, especializou-se em canhões de artilharia antiaérea. Tinha apenas 17 anos.
"Naquela época, o treinamento era diário", conta Elkeseh, 48, explicando por que sua geração tem uma intimidade natural com armas. "Os mais jovens já não entendem tanto por que o nível de treinamento foi caindo com o passar do tempo."
Livre da repressão de Gaddafi, o gosto dos líbios por armas aflorou nas últimas semanas. Fuzis, lança-granadas, pistolas e até velhas espingardas estão nas mãos de civis por toda parte.
Mesmo quando não há confrontos, os tiros são frequentes. Rebeldes atiram para o alto por qualquer motivo, seja para comemorar um levante ou em uma simples demonstração de força.
Os alunos da escola militar de Gaddafi estão nas ruas, à espera do ditador.


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