São Paulo, terça-feira, 06 de janeiro de 2009

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depoimento

"A paz do sítio foi destruída, e meu pai, despedaçado"

FARES AKRAM
DO "INDEPENDENT", EM GAZA

O telefonema surgiu às 16h20 do sábado. Uma bomba havia atingido a pequena casa de nossa fazenda no norte da faixa de Gaza. Meu pai estava caminhando do portão para a casa.
Era a fazenda mais próxima à fronteira norte com Israel. Ironicamente, sempre imaginamos que o maior perigo fossem não as tropas israelenses, mas os erros nos foguetes do Hamas disparados contra cidades de Israel logo ao norte de nós.
Mas pouco antes do cair da noite, no sábado, quando tropas terrestres e tanques israelenses invadiram a faixa de Gaza com a missão de pôr fim ao uso de foguetes pelo Hamas, a paz do local foi destruída, e a vida do meu pai, extinta. Aviões e helicópteros de combate haviam varrido a área, lançando bombas para abrir caminho às forças terrestres e tanques que seguiriam adiante assim que a noite caísse. Foi um desses ataques que causou a morte do meu pai.
Como a maioria dos cidadãos de Gaza, minha mãe, minhas irmãs, minha mulher grávida de nove meses e eu passamos a última semana aprisionados em nosso apartamento na cidade. Mas meu pai havia decidido ficar na fazenda; ele sabia que não haveria como voltar para cuidar do gado se a invasão terrestre acontecesse. A última vez que o vi foi na quinta-feira, quando ele trouxe dinheiro e um saco de farinha. Conversamos sobre o iminente nascimento de meu primeiro filho e sobre como faríamos para levar minha mulher ao hospital em meio ao bombardeio.
É claro que na noite de sábado não havia esperança de levar uma ambulância à fazenda, porque as estradas estavam bloqueadas pelos israelenses. Assim, meu tio e meu irmão dirigiram os oito quilômetros até lá e o resto da família ficou no apartamento. No fundo, todos sabíamos que papai estava morto. Quando um F-16 bombardeia sua casa, você sabe as consequências.
Sepultamos meu pai anteontem em um funeral muito rápido, sabendo que havia tanques a apenas três quilômetros. Os israelenses podem alegar que existiam militantes na área de nossa fazenda, mas jamais acreditaremos. O ponto mais avançado para os lançadores de foguetes fica seis quilômetros ao sul. Na fronteira, o terreno é uma planície aberta, sem esconderijos possíveis. Meu pai não era militante.
Nascido em Gaza e educado no Egito, ele era um advogado e juiz que trabalhou para a Autoridade Palestina. Depois que o Hamas tomou o poder, ele abandonou seu posto e se tornou agricultor.
Ele odiava o que o Hamas estava fazendo com o sistema legal de Gaza, introduzindo a justiça islâmica, e era totalmente oposto à violência.
Minha dor não envolve desejo de vingança. Mas, como um filho em luto, vejo dificuldade para distinguir entre aqueles que os israelenses chamam de terroristas e os israelenses que estão invadindo Gaza. Qual é a diferença entre o piloto que despedaçou meu pai e um militante que dispara um pequeno foguete? Só sei que, no momento em que estou por me tornar pai, perdi o meu.

Tradução de PAULO MIGLIACCI



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