São Paulo, quinta-feira, 06 de março de 2008

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ARTIGO

Guerra, direito e a política da lei

CLAUDIA ANTUNES
EDITORA DE MUNDO

A "guerra ao terror" americana, que a Colômbia tenta utilizar para legitimar seu ataque ao Equador, se ampara em duas premissas. A primeira é o conceito de "ataque preventivo", o suposto direito de reagir quando se considera que há intenção de agressão. A segunda é a política de "jamais negociar ou ceder" a grupos terroristas.
Essas premissas acabam, por vias diretas ou transversas, se chocando com outros conceitos e direitos, entre eles o respeito à soberania dos Estados, base das relações internacionais desde o Tratado de Westfália firmado entre as potências européias do século 17.
No primeiro caso, porque a tradição doutrinária e a Carta da ONU garantem o direito de defesa, mas só em caso de agressão ou agressão iminente -sendo esta última tão difícil de provar que não faltam livros discutindo exemplos históricos que a ela se aplicariam.
No segundo caso, porque os grupos hoje classificados por EUA e União Européia como terroristas, que não são novidade histórica e também são chamados de guerrilhas, organizações paraestatais ou paramilitares, travam as ditas "guerras assimétricas", em que a desvantagem em recursos bélicos é compensada pela mistura com a população civil e o desconhecimento das fronteiras.

Guerra assimétrica
Não é à toa que esses grupos ganham mais força quando têm apoio popular (caso do Hamas ou do Hizbollah) ou quando atuam em regiões com pouca presença do Estado, como a selva colombiana (caso das Farc) ou a fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão (Taleban). Combatê-los até a derrota implica violação de fronteiras e, geralmente, muitas vítimas civis, os tais "danos colaterais".
É aí que entra na discussão outra gama de normas, relativa aos direitos humanos e à proteção de civis durante conflitos.
Há tempos a soberania estatal deixou de ser vista como absoluta. A própria Carta da ONU e tratados e convenções internacionais afirmam que é dever dos Estados proteger suas populações de perseguições por razões religiosas, políticas ou étnicas. Recentemente, com a introdução pelas potências ocidentais do tema das "intervenções humanitárias", a Assembléia Geral da ONU consagrou o "dever de proteger" civis de atos de seus governos ou de organizações paramilitares.
Mas, para atingir esse objetivo de proteção, vale o princípio de que a força utilizada deve ser proporcional à ameaça e não causar, no final, mais danos do que se pretendeu evitar. Um cálculo difícil de fazer: o certo é que se sabe como as guerras, mesmo as "limitadas", começam, mas não como terminam.
Por fim, para embolar ainda mais o jogo de conceitos esgrimidos na atual crise continental, há a questão do terrorismo.
Não há consenso, na ONU ou na academia, sobre quais seriam os grupos terroristas. Se é aparentemente fácil constatar, pelo senso comum, o que são atos terroristas -ataques que visam não-combatentes-, mais difícil é aplicar a definição a organizações, pois a maioria dos grupos paramilitares tem programas políticos, embora nem sempre viáveis.
Discutir se esses programas são legítimos -como no caso de ocupação estrangeira- é um debate que não tem fim, pois, como se sabe, o terrorista de um lado é, para o outro, um "combatente da liberdade". Por isso, optar pela classificação oficial de "grupo terrorista", como Uribe fez com as Farc, não é um gesto conceitual e sim político, que indica posição de não-negociação.

Terror e democracia
Existe a idéia de que o adjetivo "terrorista" se aplicaria a grupos que combatem governos democráticos. Mas essa tese é frágil. Primeiro porque terrorismo é terrorismo em qualquer circunstância. Segundo, porque há governos legítimos que praticam o equivalente a atos terroristas, nesse caso violando o direito que se aplica à conduta na guerra -com ataques indiscriminados a civis e maus-tratos de prisioneiros.
Para as organizações internacionais de direitos humanos, por exemplo, as Convenções de Genebra se aplicam tanto aos Estados quanto a grupos paraestatais. Nos dois casos, os acusados costumam se amparar numa suposta ausência de intencionalidade -mas como julgar intenções?- ou no direito de combate à opressão -mas ele precede o dever de poupar os não-combatentes?
No fim, o que determina a precedência de um ou outro direito é a equação do poder político. Na comoção pós-11 de Setembro, os EUA obtiveram na ONU a legitimação do ataque ao Afeganistão, até porque as outras potências do Conselho de Segurança estavam interessadas em combater seus próprios "terroristas".
Isso não significa que o direito não valha nada. Ele é a garantia última dos mais fracos. Teve razão o presidente do Equador ao perguntar, retoricamente, como a Colômbia reagiria se a situação fosse inversa. Assim como, por outros motivos, a Colômbia tem razão ao afirmar que o relacionamento mais do que "humanitário" entre Chávez e as Farc constitui ingerência indevida.
Mas, nas Américas ou no mundo, o que vale é o dito antigo de que a guerra é a continuação da política, geralmente pela aposta, de um ou dos dois lados, de que o recurso às armas pode estabelecer, pela força, a primazia dos seus argumentos.


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