São Paulo, domingo, 06 de março de 2011

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ONDA DE REVOLTAS


Sem pai e sem resposta

Opositor ao regime de Muammar Gaddafi, Jaballa Matar está desaparecido há 21 anos , após ser sequestrado de sua própria casa; seu filho Hisham Matar, escritor, leva para sua obra o peso dessa ausência

VAGUINALDO MARINHEIRO
DE LONDRES

Hisham Matar é um líbio que tem uma razão especial para torcer por uma queda rápida do ditador Muammar Gaddafi: poder voltar ao país para descobrir se seu pai continua vivo.
"Assim que a Líbia se tornar um país livre, corro para lá para resolver essa questão que me atormenta há 21 anos: onde está meu pai", afirma Matar, 40, em entrevista à Folha em Londres, onde mora.
Jaballa Matar era uma das mais proeminentes vozes da oposição ao governo de Gaddafi no exterior quando foi sequestrado em sua casa, no Egito, em março de 1990.
Seu último contato com a família foi em 1995, quando enviou de forma clandestina uma carta à mulher.
Dizia ter sido torturado e estar na prisão de Abu Salim. No mesmo presídio, um ano depois, houve um massacre de 1.200 presos políticos.
"Eu não sei se meu pai está vivo. Mais da metade da minha vida eu vivi sem ele e sem ter essa resposta. Tenho esperanças porque há relatos de pessoas que dizem tê-lo visto vivo", afirma.
Matar é poeta e romancista, e a ausência de seu pai é tema de seus dois livros. O primeiro ganhou elogios do Nobel de literatura J. M. Coetzee, foi finalista do Man Booker Prize e editado em vários países, inclusive no Brasil (leia texto nesta página).
Mesmo em meio aos preparativos do lançamento, ele transformou seu apartamento em Londres numa espécie de agência de notícias quando começaram os protestos por liberdade na Líbia. Com alguns amigos, ligava para pessoas no país em busca de informações.
"Gaddafi havia criado um muro que impedia que as notícias saíssem. Não permitia a entrada de jornalistas estrangeiros, e as pessoas de lá tinham medo de falar com quem não conheciam. Passamos a ligar para advogados, médicos, professores. Recolhíamos as informações e repassávamos para jornalistas conhecidos."
Ele aposta que a questão demográfica foi um dos principais fatores para que as pessoas se levantassem contra Gaddafi, que tomou o poder há 41 anos.
"Cerca de 80% dos líbios nasceram, como eu, quando Gaddafi já estava no poder. Toda revolução precisa de jovens, da coragem, desprendimento, do otimismo deles. Muitas pessoas pensam em "Romeu e Julieta", de Shakespeare, como algo sobre o amor. Mas é um tratado sobre a juventude. Os protagonistas não fariam o que fizeram se tivessem 45 anos."

INTERVENÇÃO?
E o que querem os líbios agora, uma intervenção militar internacional?
"Não. Essa é uma revolução dos líbios. Eles querem finalizá-la do jeito deles. É como assistir a alguém subir uma montanha. É tentador pensar em ajudar quando você vê essa pessoa em perigo. Mas isso iria corromper todo o processo de subida."
Além disso, afirma, ao olhar para outras revoluções não é possível ver nenhum caso em que uma intervenção norte-americana ou europeia tenha dado bons resultados.
Matar discorda daqueles que afirmam que o país já está numa guerra civil, que se estenderia depois da queda do ditador.
"Estou surpreso como o Gaddafi tem sido bem-sucedido em passar essa ideia. Uma guerra civil ocorreria se ele morresse no poder. Há muitas pessoas em volta dele que gostariam de tomar o controle do país. Já o povo está unido de uma forma que eu nunca vi."
O escritor se irrita quando fala da reabilitação do ditador na comunidade internacional nos últimos anos.
"Hoje se fala muito nos mercenários pagos pelo Gaddafi para matar seu próprio povo. Mas a palavra mercenário é substantivo e também adjetivo. Como adjetivo, é aquele que age só por dinheiro, deixando de lado questões éticas. A relação entre Gaddafi e alguns governos, como o do Reino Unido e da Itália, de 2003 até recentemente, foi uma relação mercenária."
Com os olhos grudados na TV e o ouvido atento ao telefone, Matar espera por uma boa notícia. "Essa revolução será bem-sucedida. Minha única preocupação é quantos ainda irão morrer até que o tirano caia."
Se depois disso o escritor encontrar o pai, ou enfim descobrir o que aconteceu com ele, talvez consiga se livrar da sensação que descreve no início de seu novo livro: "Há momentos em que a ausência do meu pai é tão pesada quanto uma criança sentada em meu peito".


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