São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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Ocidente e Oriente batalham por Turquia

Crise em torno da eleição do novo presidente reacende disputa sobre influências da Europa e do Oriente Médio no país

Para analista, batalha é forma de mostrar aos muçulmanos "que é possível ser rico e livre e, ainda assim, muçulmano"

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PARIS

A crise em torno da eleição (pelo Parlamento) do novo presidente da Turquia retirou o véu de uma velha disputa pela alma turca entre o Ocidente e o Oriente, entre a Europa e o Oriente Médio.
Ou, posto de outra forma, é uma batalha para "persuadir 1,5 bilhão de muçulmanos, no mundo todo, de que podem ser ricos e livres e, ainda assim, permanecer muçulmanos. A Turquia seria a melhor demonstração prática dessa possibilidade", como disse à Folha o analista de assuntos internacionais Grenville Byford.
Ou ainda, como prefere Suat Kiniklioglu, diretor em Ancara do "German Marshall Fund" dos EUA, "não se trata de islã x secularismo, mas de uma elite nacionalista que olha para dentro versus um grande segmento da sociedade que quer gozar de uma democracia saudável".
Decodificando os termos:
1 - A Turquia é, desde Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderno, um país secular, de maioria muçulmana, mas pró-ocidental e com um razoável teor de democracia, crescente ao longo dos anos, após livrar-se da praga de golpes militares.
2 - É governada hoje por um partido (AKP, Partido do Desenvolvimento e da Justiça) moderadamente islamita, que controla o Parlamento, mas não a Presidência.
3 - O presidente é eleito indiretamente e o primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, indicou para o cargo seu chanceler, o também moderado islamita Abdulá Gül.
4 - Gül não conseguiu os votos necessários no primeiro turno, a Justiça declarou o processo inválido, por falta de quórum, e o Exército entrou em campo para advertir que deixar o governo e a Presidência nas mãos de islamitas ameaçava o laicismo de que as Forças Armadas se dizem guardiãs.
Conseqüência do impasse: convocação de eleições parlamentares para 22 de junho, quando deveriam ser apenas em novembro, como forma de relegitimar o novo governo -e, por extensão, quem vier a ser apontado para a Presidência. Resolve o impasse? À primeira vista, não, porque o AKP deve renovar, talvez aumentar, sua maioria. "Ficarei chocado se eles não vencerem a próxima eleição", diz Byford.
A previsão do especialista faz sentido: o modelo eleitoral turco impede que obtenham cadeiras no Congresso partidos que fiquem com menos de 10% dos votos, na média nacional. Seus postos cabem aos partidos que superem a barreira. Com isso, o AKP ficou com mais de 60% das cadeiras na Assembléia Nacional, apesar de ter tido apenas 34 % dos votos.
Como a fragmentação dos partidos laicos e oposicionistas se manteve, o razoável é supor que o AKP manterá sólido controle do Congresso.
Pergunta seguinte inevitável: o partido e seus dois principais líderes (Erdogan e Gül) são islamitas moderados e pró-ocidentais ou têm uma "agenda islamita secreta", conforme se especula na própria Turquia?
A maioria dos especialistas aposta firme e confiante na primeira hipótese. Morton I. Abramowitz, ex-embaixador norte-americano na Turquia, em recente depoimento para o Council on Foreign Relations, disse que Gül é estimado nos círculos ocidentais, como "um político conciliador", e decretou: "Está fora de questão que a Turquia se transforme em um Estado extremista".
Reforça Kiniklioglu, do German Marshall Fund: "Essas pessoas não são islamitas. São democratas muçulmanos ou democratas conservadores ou pós-islamitas, o que você quiser, menos islamitas".
Opinião radicalmente inversa tem, no entanto, Soner Cagaptay, pesquisador do Programa de Pesquisas sobre a Turquia do Instituto de Washington para a Política do Oriente Próximo. "As vitórias do AKP nas eleições de 2007 [presidencial e legislativa] dariam ao partido total controle do Executivo e do Legislativo, assim como a capacidade de influenciar o Judiciário e a mídia. Dessa forma, não é um exagero dizer que a Turquia pareceria um país de partido único e que o futuro da democracia turca está em jogo em 2007."
Tudo o que o Ocidente não quer é ver em risco a democracia turca, o que mataria automaticamente as chances de o país tornar-se em algum remoto e incerto futuro membro da União Européia. Por extensão, aproximaria a Turquia de seus vizinhos do Oriente Médio, risco já antevisto por Cagaptay:
"O governo do AKP, no poder desde 2002, minou, desde então, a orientação tradicionalmente pró-ocidental da política externa turca". Se corretas as sombrias previsões, fechar-se-ia o círculo apontado por Byford: a Turquia poderia continuar sendo muçulmana, mas livre e rica, pelos critérios ocidentais, certamente não.


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