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Ocidente e Oriente batalham por Turquia
Crise em torno da eleição do novo presidente reacende disputa sobre influências da Europa e do Oriente Médio no país
Para analista, batalha é forma de mostrar aos muçulmanos "que é possível ser rico e livre e, ainda assim, muçulmano"
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PARIS
A crise em torno da eleição
(pelo Parlamento) do novo presidente da Turquia retirou o
véu de uma velha disputa pela
alma turca entre o Ocidente e o
Oriente, entre a Europa e o
Oriente Médio.
Ou, posto de outra forma, é
uma batalha para "persuadir
1,5 bilhão de muçulmanos, no
mundo todo, de que podem ser
ricos e livres e, ainda assim,
permanecer muçulmanos. A
Turquia seria a melhor demonstração prática dessa possibilidade", como disse à Folha
o analista de assuntos internacionais Grenville Byford.
Ou ainda, como prefere Suat
Kiniklioglu, diretor em Ancara
do "German Marshall Fund"
dos EUA, "não se trata de islã x
secularismo, mas de uma elite
nacionalista que olha para dentro versus um grande segmento da sociedade que quer gozar
de uma democracia saudável".
Decodificando os termos:
1 - A Turquia é, desde Kemal
Ataturk, fundador da Turquia
moderno, um país secular, de
maioria muçulmana, mas pró-ocidental e com um razoável
teor de democracia, crescente
ao longo dos anos, após livrar-se da praga de golpes militares.
2 - É governada hoje por um
partido (AKP, Partido do Desenvolvimento e da Justiça)
moderadamente islamita, que
controla o Parlamento, mas
não a Presidência.
3 - O presidente é eleito indiretamente e o primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, indicou para o cargo seu chanceler, o também moderado islamita Abdulá Gül.
4 - Gül não conseguiu os votos necessários no primeiro
turno, a Justiça declarou o processo inválido, por falta de quórum, e o Exército entrou em
campo para advertir que deixar
o governo e a Presidência nas
mãos de islamitas ameaçava o
laicismo de que as Forças Armadas se dizem guardiãs.
Conseqüência do impasse:
convocação de eleições parlamentares para 22 de junho,
quando deveriam ser apenas
em novembro, como forma de
relegitimar o novo governo -e,
por extensão, quem vier a ser
apontado para a Presidência.
Resolve o impasse? À primeira
vista, não, porque o AKP deve
renovar, talvez aumentar, sua
maioria. "Ficarei chocado se
eles não vencerem a próxima
eleição", diz Byford.
A previsão do especialista faz
sentido: o modelo eleitoral turco impede que obtenham cadeiras no Congresso partidos
que fiquem com menos de 10%
dos votos, na média nacional.
Seus postos cabem aos partidos
que superem a barreira. Com
isso, o AKP ficou com mais de
60% das cadeiras na Assembléia Nacional, apesar de ter tido apenas 34 % dos votos.
Como a fragmentação dos
partidos laicos e oposicionistas
se manteve, o razoável é supor
que o AKP manterá sólido controle do Congresso.
Pergunta seguinte inevitável:
o partido e seus dois principais
líderes (Erdogan e Gül) são islamitas moderados e pró-ocidentais ou têm uma "agenda islamita secreta", conforme se
especula na própria Turquia?
A maioria dos especialistas
aposta firme e confiante na primeira hipótese. Morton I.
Abramowitz, ex-embaixador
norte-americano na Turquia,
em recente depoimento para o
Council on Foreign Relations,
disse que Gül é estimado nos
círculos ocidentais, como "um
político conciliador", e decretou: "Está fora de questão que a
Turquia se transforme em um
Estado extremista".
Reforça Kiniklioglu, do German Marshall Fund: "Essas
pessoas não são islamitas. São
democratas muçulmanos ou
democratas conservadores ou
pós-islamitas, o que você quiser, menos islamitas".
Opinião radicalmente inversa tem, no entanto, Soner Cagaptay, pesquisador do Programa de Pesquisas sobre a Turquia do Instituto de Washington para a Política do Oriente
Próximo. "As vitórias do AKP
nas eleições de 2007 [presidencial e legislativa] dariam ao
partido total controle do Executivo e do Legislativo, assim
como a capacidade de influenciar o Judiciário e a mídia. Dessa forma, não é um exagero dizer que a Turquia pareceria um
país de partido único e que o
futuro da democracia turca está em jogo em 2007."
Tudo o que o Ocidente não
quer é ver em risco a democracia turca, o que mataria automaticamente as chances de o
país tornar-se em algum remoto e incerto futuro membro da
União Européia. Por extensão,
aproximaria a Turquia de seus
vizinhos do Oriente Médio, risco já antevisto por Cagaptay:
"O governo do AKP, no poder desde 2002, minou, desde
então, a orientação tradicionalmente pró-ocidental da política externa turca". Se corretas
as sombrias previsões, fechar-se-ia o círculo apontado por
Byford: a Turquia poderia continuar sendo muçulmana, mas
livre e rica, pelos critérios ocidentais, certamente não.
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