São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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IMPRENSA

Para o jornalista americano, os jornais só passaram a criticar o governo "porque a Guerra do Iraque está indo para o inferno"

"Times" não é independente, diz Talese

RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK

Para o escritor Gay Talese, um dos maiores repórteres americanos, o "New York Times" nunca foi independente do governo dos EUA nem exerce um jornalismo suficientemente crítico. A atual atitude do jornal de maior prestígio dos EUA em relação à Guerra no Iraque é fácil: "A imprensa só passou a ser crítica porque a guerra está indo para o inferno".
Autor do livro mais conhecido sobre o "Times", "O Reino e o Poder", Talese, 72, critica a imprensa americana de forma geral e os jornais diários em particular. Responsável por relatos minuciosos que o tornaram um dos principais nomes do jornalismo literário, ele diz que a mídia "não relata a notícia porque não a vê", confiando em informações do governo.
Além disso, não mantém o distanciamento necessário de suas fontes, e os jornais, concorrendo com as redes de notícia 24 horas, não têm tempo para "pensar". A seguir, trechos da entrevista, feita por telefone.

Folha - Como o sr. vê o texto dos editores do "Times" reconhecendo erros antes da Guerra do Iraque?
Gay Talese -
Desde antes de a guerra começar me parecia que as reportagens dos jornais não questionavam, não eram céticas, não tinham independência em relação à propaganda provinda do Pentágono e da boca de gente como Condoleezza Rice [assessora de Segurança Nacional da Casa Branca]. Era um problema também dos editores, que não foram suficientemente céticos -mas eles estavam mergulhados no espírito de patriotismo que se seguiu aos ataques do 11 de Setembro. É um clichê dizer isso agora.
Os problemas começaram com os repórteres "embutidos" [em pelotões do Exército]. Fosse eu o editor do "New York Times" ou de qualquer outro jornal, jamais teria permitido que um jornalista estivesse lá, dentro de tanques. Isso torna o repórter um mascote do "time". É preciso separar o jornalismo do governo, dos ministros da propaganda.

Folha - Há algo específico no "New York Times" que permitiu que isso acontecesse por lá?
Talese -
Sobre o "New York Times", há algumas coisas que são tão verdadeiras hoje quanto eram há 30 anos, quando escrevi meu livro sobre eles. É um jornal do establishment. Sua saúde financeira, a economia do "Times", é em grande medida baseada na economia das forças que mandam no país. As políticas do governo americano estão bastante em linha com os interesses do "New York Times" enquanto um jornal do establishment.
Independentemente dos editores que, de tempos em tempos, dizem "somos independentes, independentes, independentes", eles não são economicamente independentes. Nunca foram realmente independentes, com exceção de alguns episódios.
No caso do Vietnã, o primeiro repórter a soar o alarme, pelo "Times", foi Harrison Salisbury. Em 1965, ele relatou o bombardeio de Hanói. Todos no Departamento de Estado disseram que ele era um mentiroso, um comunista, blá, blá. Depois, a guerra começou a desandar, e o governo não pôde mais vender essa história.
Pulemos para 2004. É a mesma coisa. A mídia faz parte da operação, toda a mídia. Eles vão com os vencedores. A idéia é ficar do lado de quem está ganhando. Não há dissidência neste país.
A imprensa só passou a ser crítica porque a guerra está indo para o inferno. Não era há seis meses. Só o é quando as coisas vão mal, porque então é seguro estar do lado da crítica. Isso não é coragem.

Folha - O sr. vê falhas maiores agora do que no passado?
Talese -
O problema é que ela não relata a notícia porque não a vê. A notícia é entregue à mídia por alguém -pelos generais, pelo pessoal de relações públicas do presidente. No afã de conseguir informações de dentro, exclusivas, os jornalistas se tornam "embutidos" justamente com as pessoas das quais eles deveriam estar desvinculados.
Mas, quando os carros do Exército começam a explodir, quando bombas explodem edifícios, quando as pessoas morrem, incluindo líderes no Iraque dessa administração de fantoches que estão criando, então, muito bem, a história é outra.
A mídia age como um bando de lobos. Movem-se dessa maneira. Vêem uma carcaça e pulam sobre ela. Quando essa carcaça era um monstro, quando estava viva com toda a mitologia de americanos sendo bem recebidos com flores no Iraque, a mídia apoiou.

Folha - Houve algum momento ao longo do século 20 em que a imprensa tenha sido mais crítica?
Talese -
Não. A mídia nunca foi suficientemente crítica. Harrison Salisbury era crítico. Outros repórteres também. Mas isso foi só quando o Vietnã se tornou uma experiência horrorosa. No início, não era crítica.

Folha - O "New York Times" pode sair maculado desses percalços?
Talese -
Todo dia eles morrem, e todo dia eles nascem. Todo dia é um novo jornal, e tudo, cedo ou tarde, é esquecido.

Folha - Há alguma publicação hoje nos EUA que o sr. considere suficientemente crítica?
Talese -
A melhor publicação é a revista "New Yorker". E [seu colaborador] Seymour Hersh é das poucas pessoas corajosas do país. Mas é uma revista semanal. Têm mais tempo para pensar no que vão escrever. Nos jornais, o que escrevem hoje não tem a ver com o que foi escrito ontem ou será amanhã. Estão correndo tanto para competir com as TVs a cabo, com esses canais de notícias 24 horas. Não deviam competir.



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