São Paulo, domingo, 06 de julho de 2008

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Religiosa, Uganda usa moralismo contra a Aids

Estratégia "ABC" aposta em abstinência, fidelidade e, em terceiro lugar, camisinha

Governo diz que campanha levou taxa de contaminação de 30% nos anos 1980 a 7% hoje; poderio das igrejas e dinheiro dos EUA são armas


FÁBIO ZANINI
EM CAMPALA (UGANDA)

A missa na minúscula igreja com telhado de zinco e meia dúzia de bancos de madeira numa rua de terra em Campala está começando, e Louis Kermu, 27, sobe ao púlpito improvisado para dar seu testemunho. "Agradeço a Deus por me ajudar a continuar sexualmente puro. Não é fácil. Onde eu moro, as pessoas da minha idade ouvem músicas com referências sexuais que me tentam. Mas eu sigo acreditando." Seguem-se aplausos.
Todos os dias em Uganda, discursos como esse fazem apologia da abstinência sexual, uma estratégia abraçada pelo governo com ajuda das igrejas e financiamento do governo norte-americano e elevada a carro-chefe da política anti-Aids.
Nos últimos 20 anos, o país de 30 milhões de habitantes no centro da África conseguiu diminuir significativamente a incidência da doença, de uma maneira que passa longe da abordagem tradicional.
As estatísticas oficiais falam em uma redução de 30% da população contaminada no final dos anos 80 para pouco mais de 7% atualmente. O percentual ainda é alto para padrões internacionais, e chegou a apresentar uma leve alta nos últimos anos, mas é um caso raro no continente mais afetado pela doença no mundo.
Países como África do Sul, Suazilândia, Botsuana, Zâmbia e Zimbábue, entre outros, há anos tentam em vão reduzir índices de contaminação que chegam a quase 40%.
A abordagem ugandense é polêmica e assumidamente moralista. Em vez de massificar o uso de camisinhas, método adotado por vários países e o preferido das organizações internacionais, investe-se na mudança de comportamento.
A estratégia surgiu nos anos 80 em círculos cristãos norte-americanos, mas foi em Uganda que ela adquiriu proporções de política de Estado.
Desde 1986, o governo adota a política batizada de ABC: A de abstinência, dirigida aos jovens solteiros; B de "be faithful" (seja fiel), para os casados; C de "condom", camisinha, para quem não seguir as anteriores.
Mas, como explica James Kigozi, diretor de Comunicação da Comissão de Aids de Uganda, órgão oficial que trata da epidemia, as letras têm peso diferente. "A ordem em que elas estão é importante. Nossa estratégia é um pacote em que as camisinhas são apenas a terceira escolha", afirma ele.
Segundo as estatísticas oficiais, apenas 25% da população sexualmente ativa nas áreas urbanas usa com regularidade a camisinha. Nas áreas rurais, onde vivem 80% das pessoas, o índice cai para perto de zero.
O governo não faz questão nenhuma de elevar esses números. Tanto que a previsão do Programa da ONU para o Desenvolvimento em Uganda é de que faltarão preservativos no país para distribuição gratuita a partir de outubro, devido a cortes no orçamento para importação das camisinhas.
Pelas ruas de Campala e pelas estradas do país, grandes outdoors patrocinados pelo governo divulgam o enfoque moralizador. Uma peça mostra três garotas vestidas para uma formatura universitária, dizendo: "Só chegamos tão longe porque nos abstivemos".
Outra é destinada a combater o sexo entre garotas e homens mais velhos, uma grande fonte de disseminação da Aids, segundo o governo. "Você deixaria este homem ficar com sua filha adolescente?", diz o cartaz, ao lado da foto de um senhor de meia idade. "Então, por que você está com a dele?".

Pulsão religiosa
A política do ABC sobrevive há mais de duas décadas em grande parte porque foi encampada com entusiasmo pelas igrejas. Em Uganda, 42% da população é católica, e percentual igual é evangélico.
O presidente, Yoweri Museveni, no poder desde 1986, é um ex-guerrilheiro marxista que se diz um "renascido cristão", assim como seu colega norte-americano, George Bush. A primeira-dama, Janeth, tem uma ONG que promove a abstinência. O dinheiro dos EUA, US$ 2 bilhões nos últimos dez anos, vem com a condição de ser usado para promover abstinência.
"O governo sabe que as igrejas são uma força moral poderosa em Uganda, quase invencível, e decidiu trabalhar com elas", afirma Paddy Musana, estudioso de questões religiosas da Universidade Makerere. Não por acaso, o presidente da comissão oficial de combate à Aids, que inclui representantes da sociedade, é um bispo católico aposentado.
O governo usa também como argumento o que chama de "fatores culturais" do povo de Uganda. "A sociedade africana tem uma tradição de poligamia. É socialmente aceito", diz Kigozi. Por isso, diz ele, a letra B na tríade do ABC também é valorizada. Para muçulmanos (12% da população), há uma peculiaridade. O recado é: "seja fiel a todas as suas mulheres".
Além disso, segundo o governo, o ugandense nas áreas rurais, onde vive a maioria da população, tem pouca informação e acesso à camisinha.
"Eles não sabem usar e não têm dinheiro para comprar. As pessoas bebem, se divertem e esquecem de usar a camisinha", afirma Kigozi.


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