São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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IRAQUE

Apesar de ter investido dinheiro e esforços, Washington não conseguiu estabelecer alternativa confiável ao ditador

EUA ainda buscam substituto de Saddam

IGOR GIELOW
COORDENADOR DA AGÊNCIA FOLHA

Enquanto o mundo pergunta se, quando e como os EUA atacarão o Iraque, cresce a importância de uma questão tão ou mais relevante: quem dirigirá o país se Saddam Hussein for removido do poder?
A resposta não é simples. Mesmo gastando oficialmente US$ 100 milhões em ajuda a grupos de oposição desde 1998, os EUA não conseguiram estabelecer uma alternativa confiável ao ditador.
Confiável, é bom deixar claro, no conceito hegemônico americano: um governo aliado do Ocidente, que facilite a exploração do potencial petrolífero iraquiano e que não seja um fator de desestabilização para os países vizinhos.
O principal corpo opositor ao regime é o CNI (Congresso Nacional Iraquiano), que reúne dezenas de grupos que se animaram com a fraqueza do líder iraquiano após a Guerra do Golfo (1991). Exilado em Londres após a retomada de controle por Saddam, o CNI é visto com reservas.
Seu líder, o milionário xiita Ahmad Chalabi, é considerado por alguns um visionário, mas por várias pessoas uma figura autoritária. O grupo, porém, concentra boa parte de uma eventual elite política a substituir a chefia da burocracia estatal, hoje nas mãos do partido Baath, de Saddam.
""Estamos prontos para estabelecer um regime democrático, que reúna o povo do Iraque e garanta sua unicidade territorial", disse, por telefone, Faisal Quraish, do escritório do CNI em Londres.
Há um consenso, entre especialistas consultados, de que é fundamental a participação de oficiais no exílio e desertores do Exército de Saddam para governar o país.
O nome do general Fawzi al Shamari, do Movimento de Oficiais do Iraque, baseado em Washington, é lembrado por seu bom trânsito no Exército. Exilado desde 1986, pesa contra ele o fato de ter admitido o uso de armas químicas na guerra Irã-Iraque.
Outro ""celeiro" a ser explorado é o Acordo Nacional Iraquiano, uma entidade que conta com cerca de mil ex-militares e membros dos serviços de segurança que fugiram de Saddam após uma violenta repressão em 1995-6.
Outro ponto nevrálgico diz respeito aos curdos. Ruidosa minoria no país, com 19% dos 23 milhões de habitantes, os curdos estão divididos em dois partidos: a União Patriótica do Curdistão e o Partido Democrático do Curdistão, que fazem parte do CNI, mas têm linhas autônomas. Ambos advogam a criação do Curdistão, que reuniria sua população e os outros curdos espalhados por Irã, Turquia e Síria. Maior povo sem país do mundo, com 25 milhões de pessoas, os curdos alimentam um nacionalismo forte.
Aí está o problema para os EUA: se fomentarem demais a causa curda, terão de tocar no tema do Estado próprio. E isso desagrada à Turquia, que combate a guerrilha curda há décadas e é estratégica para os interesses americanos na região. Só na base de Incirlik há 1.700 soldados dos EUA e aviões de ataque usados no Iraque.
Desde a Guerra do Golfo, americanos e britânicos operam a favor dos curdos iraquianos. A zona de exclusão aérea ao norte do país deu autonomia total para a etnia. ""Com nosso novo acordo, estamos prontos para ajudar os EUA", afirmou, por e-mail, o Centro de Imprensa do Partido Democrático do Curdistão em Ancara (Turquia). Nesse acordo, os dois partidos concordaram em unificar suas reivindicações, rascunhar uma Constituição e parar de brigar entre si.
Um detalhe sensível é que eles querem, como capital, Kirkuk -centro petrolífero do norte do país. Isso não seria aceito por um novo governo em Bagdá, em especial se estiver negociando com empresas petrolíferas dos EUA.
O modelo libanês
A natureza desse eventual novo governo também é um nó político. Uma idéia interessante é defendida pelo diretor-assistente do Centro de Estudos Internacionais da Universidade de Cambridge, Yezid Sayigh. Ele crê ser possível elaborar um sistema de governo em linhas etnoconfessionais em linhas semelhantes à implantada para acabar com a guerra civil libanesa (1975-90) -o acordo de Taifa dividiu o poder entre cristãos, muçulmanos sunitas e xiitas.
Do caldeirão iraquiano, argumenta Sayigh, é possível pescar três grupos representativos das forças políticas do país. São eles os curdos, os árabes sunitas e os árabes xiitas -este último o maior grupo, compondo mais da metade da população e historicamente dominado pela minoria sunita, que controla as Forças Armadas.
""Há várias tribos e partidos, mas acredito que os EUA possam impor um sistema transitório de poder, como numa assembléia nacional, dividindo o país nessas linhas. A própria repressão de Saddam ajuda a criar essas linhas divisórias", disse Sayigh.
Isso poderia atenuar as reivindicações curdas e evitar que os xiitas tomem o rumo da pátria-mãe de sua seita religiosa -o vizinho Irã. Esse é um pesadelo para os EUA, uma vez que Teerã também é visto como inimigo. Como os xiitas estão no sul rico em petróleo, uma eventual aliança com os iranianos poderia concentrar poder econômico na mão dos aiatolás, algo indesejável a Washington.
Como disse o ""New York Times", o governo Bush não está certo de que o financiamento de grupos anti-Saddam esteja dando resultados. Senadores mostram irritação com o que consideraram falta de informações da CIA sobre as consequências de um ataque.
Isso reforça o temor de que as mentes militares estejam muito à frente das mentes políticas. E o resultado desse descompasso pode ser uma desestabilização regional tão grande que haverá gente perguntando se não teria sido melhor apenas ""enquadrar" Saddam.



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