São Paulo, domingo, 07 de janeiro de 2007

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ARTIGO

Metáfora terrível para os EUA

Na hesitação ante o que mostrar das cenas do enforcamento de Saddam, pena de morte era tema oculto que os meios de comunicação não chegaram a citar

ALEXANDER KEYSSAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

A execução de Saddam Hussein, no fim de semana passado, teve vários aspectos perturbadores. Entre eles está a posição estranha assumida por boa parte da imprensa americana em relação à morte do ex-ditador por enforcamento. Após a notícia inicial de que Saddam tinha de fato sido executado, as redes de TV dedicadas ao jornalismo se concentraram na notícia, com seus repórteres correndo para descobrir detalhes sobre a própria execução e as horas que a antecederam. A CNN (e também a Fox) ficaram no ar por várias horas, oferecendo pedacinhos de informação entremeados com imagens de arquivo do regime de Saddam Hussein e da invasão americana.
Um clima de suspense foi conferido à cobertura, apesar de o desenlace já ter acontecido, pela espera para ver que novas imagens da execução seriam divulgadas. A CNN informou seu público que o governo iraquiano havia fotografado e filmado a execução, mas não ficou claro se seriam divulgadas imagens. A rede também assegurou a seus espectadores que não seria mostrado nada demasiado explícito ou perturbador e que seus executivos iriam examinar cuidadosamente quaisquer imagens que chegassem, para avaliar o que seria apropriado exibir.
A mensagem implícita era que seria errado ou impróprio, de alguma maneira, que o público espectador visse como é de fato uma execução por enforcamento. E, quando as fotos e imagens em vídeo de fato foram disponibilizadas, a grande imprensa (diferentemente da internet) foi muito parcimoniosa em termos do que publicou ou exibiu. O público americano foi protegido do espetáculo macabro de um homem algemado, com uma corda grossa em volta do pescoço, mergulhando em um alçapão.
Mas não houve comentários ou reflexões sobre por que seria "impróprio" ou perturbador ou errado exibir as imagens e fotos. Tampouco houve comentários sobre a própria pena de morte, embora seja certo que o desconforto provocado pelas imagens explícitas se deveu em parte ao incômodo causado pelo fato brutal de um Estado estar pondo fim à vida de um homem, mesmo que fosse a de um homem tão odioso e criminoso quanto Saddam.
Tampouco foi mencionado o fato de que a maioria dos países civilizados -uma comunidade da qual os EUA reivindicam a liderança- já proibiu a pena de morte, mesmo para homens que cometeram crimes odiosos e vis. Em última análise, a mensagem pareceu ser que não houve nada de criticável no que acabara de acontecer em Bagdá; que o impróprio seria assistir àquilo acontecer, assistir de fato a um ato de violência do Estado que o governo dos EUA ajudara a fazer acontecer.
Nisso talvez resida uma metáfora terrível para a política e a população dos EUA: aquilo que provocamos no Iraque é insuportável de se assistir, e, por isso, só nos permitimos assistir a realidades editadas que não sejam perturbadoras demais.


O historiador ALEXANDER KEYSSAR, autor de "The Right to Vote, The Contested History of Democracy in the United States", é professor da Escola Kennedy de Governo da Universidade Harvard


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