São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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Vendida quando adolescente em seu país, sudanesa foi enviada para Londres, onde serviu um diplomata, sem salário

Revelações de uma ex-escrava

ROGERIO WASSERMANN
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE LONDRES

Mende Nazer, como milhares de sudaneses, foi seqüestrada na adolescência e transformada em escrava. Em setembro de 2000, após oito anos -os últimos quatro meses em Londres, na casa de um diplomata sudanês-, ela conseguiu fugir e recuperar a liberdade. Passados pouco mais de três anos, ela quer que sua história sirva de alerta para que a escravidão no mundo seja erradicada.
Nazer, que acredita ter entre 24 e 25 anos (ela não tem registro de nascimento), acaba de lançar no Reino Unido o livro "Slave" (escrava), escrito em parceria com o jornalista britânico Damien Lewis, no qual ela relata sua história.
Conta ter sido levada de sua vila nas montanhas de Nuba, no norte do Sudão, por um grupo de milicianos árabes montados a cavalo. "Eles matavam os homens, estupravam as mulheres e levavam as crianças", diz. Na capital do país, Cartum, foi vendida como escrava para uma família.
Por mais de sete anos, ela trabalhou 16 horas por dia fazendo serviços domésticos, sem ganhar um tostão, sem sair de casa e sofrendo abusos físicos constantes. Dessa época, ela leva em seu braço esquerdo a cicatriz de uma queimadura que teria sido feita por sua "dona", com uma panela quente, como castigo por ter errado uma receita.
Sua sorte começou a mudar no primeiro semestre de 2000, quando foi enviada como "presente" a Londres para trabalhar na casa da irmã de sua primeira dona, casada com um diplomata sudanês.
Durante um período de férias, no qual a família do diplomata viajou ao Sudão e a deixou na casa de outra família, ela saiu às ruas, sem nenhum dinheiro e sem falar uma palavra de inglês, tentando encontrar alguém que a ajudasse.
Qualquer pessoa que lhe parecesse sudanesa recebia um cumprimento em árabe, até que ela conseguiu contato com alguém que falava a língua e a levou a outra pessoa originária da mesma região do Sudão que Nazer. Essas pessoas a ajudaram então a fugir.
O diplomata para o qual trabalhava, Abdel al Koronky, não está mais em Londres e deixou o serviço diplomático sudanês. A Embaixada do Sudão em Londres nega qualquer envolvimento no caso (leia texto nesta página).
Em uma carta divulgada em 2002, quando o caso se tornou público, Koronky alegou que Nazer viajou a Londres para trabalhar em sua casa como babá e que receberia um salário de 200 libras ao mês (cerca de R$ 1.100). Ele a acusou de inventar a história para conseguir asilo em Londres.
"É lógico que agora eles vão querer negar tudo", rebate Nazer. "Mas não vim para Londres pela minha vontade", afirma.
Seu livro, que já havia sido lançado anteriormente na Alemanha, onde vendeu mais de 150 mil cópias, deve ser transformado em filme. No último mês, ela se tornou conhecida no Reino Unido, com entrevistas em todos os grandes jornais e TVs. A história de Nazer já havia ganho as manchetes anteriormente ao gerar uma campanha nacional a favor da concessão de asilo a ela. Nazer somente recebeu permissão para ficar no Reino Unido no final do ano passado, após um recurso para reverter a negativa inicial.
"Espero que a minha história possa levantar uma discussão sobre a questão da escravidão e ajude a acabar com essa prática", disse à Folha, num inglês perfeito, mas com forte sotaque.
Ela diz ter medo de regressar ao Sudão, após ter acusado o governo local de compactuar com a ação das milícias que a seqüestraram. Mas espera poder, em breve, reencontrar os pais, que não vê desde que foi levada de sua vila. Mesmo após sua fuga, ela manteve apenas alguns raros contatos telefônicos com eles, que precisam viajar um dia inteiro para chegar à cidade mais próxima onde há telefone público.
Além de um possível reencontro com a família, os planos de Nazer para o futuro incluem uma possível carreira no setor de saúde. "Pretendo estudar para me tornar enfermeira. Meu sonho era ser médica, mas não sei se seria possível, por causa da língua", diz.
Ela diz ainda ter pesadelos com as imagens da invasão de sua vila pelos milicianos, há mais de uma década, mas conta ter superado, depois de muito tempo, o medo de ser novamente escravizada.
"Finalmente, dei-me conta de que sou um ser humano. Ninguém mais pode me mandar fazer coisas que não quero fazer."

 

Folha - Como você se tornou escrava?
Mende Nazer -
Um dia, um grupo de milicianos árabes atacou minha vila. Eles matavam os homens, estupravam as mulheres e levavam as crianças. Levaram uns 15 garotos e garotas para Cartum.

Folha - O que aconteceu lá? Você foi vendida como escrava?
Nazer -
Foi isso, mas só fui compreender após muitos anos. No início, não sabia por que tinha sido tirada da casa dos meus pais e levada para aquele outro lugar. Não sabia que tinha sido vendida como uma mercadoria.

Folha - Que tipo de trabalho você tinha que fazer?
Nazer -
Todo tipo de trabalho. Limpar a casa, lavar as roupas à mão, passar, lavar a louça, cuidar das crianças e cozinhar.

Folha - Como era o tratamento que você recebia?
Nazer -
A dona da casa me tratava pior do que a um animal. Batia em mim com bastões ou com o que tivesse à mão, batia na minha cara, me empurrava. As crianças não falavam comigo. A mãe dizia para elas não tocarem em mim porque eu poderia transmitir alguma doença contagiosa. O pai só fazia o que a mulher mandava.

Folha - Eles te pagavam algo?
Nazer -
Não, nunca recebi nada.

Folha - Você tentou escapar durante esse período no Sudão?
Nazer -
Tentei, mas era difícil. E eles me bateram muito. Não sabia para onde ir, não tinha nenhum dinheiro e não conhecia ninguém que pudesse me ajudar.

Folha - Como você foi trazida para Londres?
Nazer -
Minha dona me mandou para Londres para trabalhar para a irmã dela. Colocou-me num avião, e cheguei sem saber nada, nem uma palavra de inglês. Na imigração, eles pegaram meu passaporte, perguntaram algumas coisas, mas eu não entendia nada, não sabia o que diziam.

Folha - Você sabia que havia sido enviada para Londres?
Nazer -
Eu só sabia que estava indo para Londres, num país estrangeiro, mas não sabia onde ficava nem como era a cidade.

Folha - A família para a qual você passou a trabalhar em Londres a tratava melhor?
Nazer -
O tratamento era um pouco melhor porque eles não me batiam tanto. Mas eu preferia a vida no Sudão porque, após um tempo, minha dona começou a me mandar fazer compras. Eu podia pelo menos sair de casa para tomar um pouco de ar. Em Londres, eu nunca saía.

Folha - E como você escapou?
Nazer -
Após dois meses, meus donos viajaram para o Sudão e me deixaram na casa de uns amigos deles. Eram pessoas muito melhores, trataram-me bem. Foi a primeira vez em que me senti como um ser humano. Deixavam-me sair. Tentei, então, encontrar alguém que pudesse me ajudar. Achei uma pessoa que falava árabe e que conhecia alguém que também era das montanhas de Nuba. Esse homem descobriu meu endereço e, quando meus donos voltaram do Sudão, veio me buscar, numa segunda-feira, 11 de setembro [de 2000].

Folha - Após escapar, você teve medo de que fossem atrás de você?
Nazer -
Eu achava que ninguém seria capaz de impedir que os meus donos fossem atrás de mim. Estava realmente assustada, com muito medo, não parava de tremer. Quase dois anos se passaram até eu perceber que estava livre, que eles não seriam capazes de me levar de volta para a escravidão.

Folha - Quando seu caso se tornou público, o diplomata sudanês para quem você trabalhava alegou que você teria vindo a Londres para trabalhar como babá e que teria inventado a história da escravidão para obter asilo no Reino Unido.
Nazer -
É lógico que eles tentaram negar tudo. Disseram que me pagavam um salário, que me tratavam bem. Eu não vim para Londres por minha própria vontade. Foram eles que me trouxeram.

Folha - Como você recebeu a notícia de que seu primeiro pedido de asilo havia sido negado?
Nazer -
Achei que iriam me mandar de volta para o Sudão. Chorei muito, pensei que seria melhor me matar do que voltar para lá. Não faria nenhuma diferença, pois, se me mandassem para o Sudão, eu seria morta lá.

Folha - Quem a mataria?
Nazer -
O governo.

Folha - Por quê?
Nazer -
Porque eu acusei o governo sudanês de estar envolvido com a questão da escravidão. Muitas crianças são tiradas todos os anos de suas famílias e escravizadas, e as pessoas que as seqüestram integram milícias ligadas ao governo.

Folha - Como a atenção gerada pelo seu caso pode ajudar a acabar com a escravidão no Sudão e em outras partes do mundo?
Nazer -
Espero que minha história possa levantar a discussão sobre a questão da escravidão e ajudar a acabar com essa prática. Por isso escrevi o livro.

Folha - O que pode ser feito para combater o problema?
Nazer -
Pressionar o governo sudanês a respeitar os cidadãos e a garantir seus direitos humanos.

Folha - Há grupos americanos que compram escravos para libertá-los. Isso pode ajudar?
Nazer -
Penso que não é a melhor forma de lidar com o problema porque apenas incentiva ainda mais esses grupos que seqüestram crianças para escravizá-las.

Folha - Quais são os seus planos para o futuro?
Nazer -
Meu maior desejo é rever meus pais, que não encontro desde que fui seqüestrada.

Folha - Você pretende voltar para o Sudão para vê-los?
Nazer -
Não posso viajar porque não tenho passaporte. E também não me sentiria segura de ir hoje ao Sudão. Talvez no futuro.

Folha - Se você pudesse, gostaria de voltar a viver no Sudão?
Nazer -
Não sei dizer. Gostaria de rever minha família, mas quero estar livre para viver onde quiser. No fundo, gostaria de voltar a viver nas montanhas de Nuba, que são o meu lugar, mas acho que seria melhor viver em Londres, para poder dar um futuro melhor para meus filhos, se eu os tiver.



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