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Vendida quando adolescente em seu país, sudanesa foi enviada para Londres, onde serviu um diplomata, sem salário
Revelações de uma ex-escrava
ROGERIO WASSERMANN
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE LONDRES
Mende Nazer, como milhares
de sudaneses, foi seqüestrada na
adolescência e transformada em
escrava. Em setembro de 2000,
após oito anos -os últimos quatro meses em Londres, na casa de
um diplomata sudanês-, ela
conseguiu fugir e recuperar a liberdade. Passados pouco mais de
três anos, ela quer que sua história
sirva de alerta para que a escravidão no mundo seja erradicada.
Nazer, que acredita ter entre 24
e 25 anos (ela não tem registro de
nascimento), acaba de lançar no
Reino Unido o livro "Slave" (escrava), escrito em parceria com o
jornalista britânico Damien Lewis, no qual ela relata sua história.
Conta ter sido levada de sua vila
nas montanhas de Nuba, no norte
do Sudão, por um grupo de milicianos árabes montados a cavalo.
"Eles matavam os homens, estupravam as mulheres e levavam as
crianças", diz. Na capital do país,
Cartum, foi vendida como escrava para uma família.
Por mais de sete anos, ela trabalhou 16 horas por dia fazendo serviços domésticos, sem ganhar um
tostão, sem sair de casa e sofrendo
abusos físicos constantes. Dessa
época, ela leva em seu braço esquerdo a cicatriz de uma queimadura que teria sido feita por sua
"dona", com uma panela quente,
como castigo por ter errado uma
receita.
Sua sorte começou a mudar no
primeiro semestre de 2000, quando foi enviada como "presente" a
Londres para trabalhar na casa da
irmã de sua primeira dona, casada com um diplomata sudanês.
Durante um período de férias,
no qual a família do diplomata
viajou ao Sudão e a deixou na casa
de outra família, ela saiu às ruas,
sem nenhum dinheiro e sem falar
uma palavra de inglês, tentando
encontrar alguém que a ajudasse.
Qualquer pessoa que lhe parecesse sudanesa recebia um cumprimento em árabe, até que ela
conseguiu contato com alguém
que falava a língua e a levou a outra pessoa originária da mesma
região do Sudão que Nazer. Essas
pessoas a ajudaram então a fugir.
O diplomata para o qual trabalhava, Abdel al Koronky, não está
mais em Londres e deixou o serviço diplomático sudanês. A Embaixada do Sudão em Londres nega qualquer envolvimento no caso (leia texto nesta página).
Em uma carta divulgada em
2002, quando o caso se tornou público, Koronky alegou que Nazer
viajou a Londres para trabalhar
em sua casa como babá e que receberia um salário de 200 libras ao
mês (cerca de R$ 1.100). Ele a acusou de inventar a história para
conseguir asilo em Londres.
"É lógico que agora eles vão
querer negar tudo", rebate Nazer.
"Mas não vim para Londres pela
minha vontade", afirma.
Seu livro, que já havia sido lançado anteriormente na Alemanha, onde vendeu mais de 150 mil
cópias, deve ser transformado em
filme. No último mês, ela se tornou conhecida no Reino Unido,
com entrevistas em todos os grandes jornais e TVs. A história de
Nazer já havia ganho as manchetes anteriormente ao gerar uma
campanha nacional a favor da
concessão de asilo a ela. Nazer somente recebeu permissão para ficar no Reino Unido no final do
ano passado, após um recurso para reverter a negativa inicial.
"Espero que a minha história
possa levantar uma discussão sobre a questão da escravidão e ajude a acabar com essa prática", disse à Folha, num inglês perfeito,
mas com forte sotaque.
Ela diz ter medo de regressar ao
Sudão, após ter acusado o governo local de compactuar com a
ação das milícias que a seqüestraram. Mas espera poder, em breve,
reencontrar os pais, que não vê
desde que foi levada de sua vila.
Mesmo após sua fuga, ela manteve apenas alguns raros contatos
telefônicos com eles, que precisam viajar um dia inteiro para
chegar à cidade mais próxima onde há telefone público.
Além de um possível reencontro com a família, os planos de
Nazer para o futuro incluem uma
possível carreira no setor de saúde. "Pretendo estudar para me
tornar enfermeira. Meu sonho era
ser médica, mas não sei se seria
possível, por causa da língua", diz.
Ela diz ainda ter pesadelos com
as imagens da invasão de sua vila
pelos milicianos, há mais de uma
década, mas conta ter superado,
depois de muito tempo, o medo
de ser novamente escravizada.
"Finalmente, dei-me conta de
que sou um ser humano. Ninguém mais pode me mandar fazer
coisas que não quero fazer."
Folha - Como você se tornou escrava?
Mende Nazer - Um dia, um grupo de milicianos árabes atacou
minha vila. Eles matavam os homens, estupravam as mulheres e
levavam as crianças. Levaram uns
15 garotos e garotas para Cartum.
Folha - O que aconteceu lá? Você
foi vendida como escrava?
Nazer - Foi isso, mas só fui compreender após muitos anos. No
início, não sabia por que tinha sido tirada da casa dos meus pais e
levada para aquele outro lugar.
Não sabia que tinha sido vendida
como uma mercadoria.
Folha - Que tipo de trabalho você
tinha que fazer?
Nazer - Todo tipo de trabalho.
Limpar a casa, lavar as roupas à
mão, passar, lavar a louça, cuidar
das crianças e cozinhar.
Folha - Como era o tratamento
que você recebia?
Nazer - A dona da casa me tratava pior do que a um animal. Batia
em mim com bastões ou com o
que tivesse à mão, batia na minha
cara, me empurrava. As crianças
não falavam comigo. A mãe dizia
para elas não tocarem em mim
porque eu poderia transmitir alguma doença contagiosa. O pai só
fazia o que a mulher mandava.
Folha - Eles te pagavam algo?
Nazer - Não, nunca recebi nada.
Folha - Você tentou escapar durante esse período no Sudão?
Nazer - Tentei, mas era difícil. E
eles me bateram muito. Não sabia
para onde ir, não tinha nenhum
dinheiro e não conhecia ninguém
que pudesse me ajudar.
Folha - Como você foi trazida para Londres?
Nazer - Minha dona me mandou
para Londres para trabalhar para
a irmã dela. Colocou-me num
avião, e cheguei sem saber nada,
nem uma palavra de inglês. Na
imigração, eles pegaram meu passaporte, perguntaram algumas
coisas, mas eu não entendia nada,
não sabia o que diziam.
Folha - Você sabia que havia sido
enviada para Londres?
Nazer - Eu só sabia que estava indo para Londres, num país estrangeiro, mas não sabia onde ficava nem como era a cidade.
Folha - A família para a qual você
passou a trabalhar em Londres a
tratava melhor?
Nazer - O tratamento era um
pouco melhor porque eles não me
batiam tanto. Mas eu preferia a vida no Sudão porque, após um
tempo, minha dona começou a
me mandar fazer compras. Eu podia pelo menos sair de casa para
tomar um pouco de ar. Em Londres, eu nunca saía.
Folha - E como você escapou?
Nazer - Após dois meses, meus
donos viajaram para o Sudão e
me deixaram na casa de uns amigos deles. Eram pessoas muito
melhores, trataram-me bem. Foi
a primeira vez em que me senti
como um ser humano. Deixavam-me sair. Tentei, então, encontrar alguém que pudesse me
ajudar. Achei uma pessoa que falava árabe e que conhecia alguém
que também era das montanhas
de Nuba. Esse homem descobriu
meu endereço e, quando meus
donos voltaram do Sudão, veio
me buscar, numa segunda-feira,
11 de setembro [de 2000].
Folha - Após escapar, você teve
medo de que fossem atrás de você?
Nazer - Eu achava que ninguém
seria capaz de impedir que os
meus donos fossem atrás de mim.
Estava realmente assustada, com
muito medo, não parava de tremer. Quase dois anos se passaram
até eu perceber que estava livre,
que eles não seriam capazes de me
levar de volta para a escravidão.
Folha - Quando seu caso se tornou público, o diplomata sudanês
para quem você trabalhava alegou
que você teria vindo a Londres para
trabalhar como babá e que teria inventado a história da escravidão
para obter asilo no Reino Unido.
Nazer - É lógico que eles tentaram negar tudo. Disseram que me
pagavam um salário, que me tratavam bem. Eu não vim para Londres por minha própria vontade.
Foram eles que me trouxeram.
Folha - Como você recebeu a notícia de que seu primeiro pedido de
asilo havia sido negado?
Nazer - Achei que iriam me
mandar de volta para o Sudão.
Chorei muito, pensei que seria
melhor me matar do que voltar
para lá. Não faria nenhuma diferença, pois, se me mandassem para o Sudão, eu seria morta lá.
Folha - Quem a mataria?
Nazer - O governo.
Folha - Por quê?
Nazer - Porque eu acusei o governo sudanês de estar envolvido
com a questão da escravidão.
Muitas crianças são tiradas todos
os anos de suas famílias e escravizadas, e as pessoas que as seqüestram integram milícias ligadas ao
governo.
Folha - Como a atenção gerada
pelo seu caso pode ajudar a acabar
com a escravidão no Sudão e em
outras partes do mundo?
Nazer - Espero que minha história possa levantar a discussão sobre a questão da escravidão e ajudar a acabar com essa prática. Por
isso escrevi o livro.
Folha - O que pode ser feito para
combater o problema?
Nazer - Pressionar o governo sudanês a respeitar os cidadãos e a
garantir seus direitos humanos.
Folha - Há grupos americanos
que compram escravos para libertá-los. Isso pode ajudar?
Nazer - Penso que não é a melhor forma de lidar com o problema porque apenas incentiva ainda mais esses grupos que seqüestram crianças para escravizá-las.
Folha - Quais são os seus planos
para o futuro?
Nazer - Meu maior desejo é rever
meus pais, que não encontro desde que fui seqüestrada.
Folha - Você pretende voltar para
o Sudão para vê-los?
Nazer - Não posso viajar porque
não tenho passaporte. E também
não me sentiria segura de ir hoje
ao Sudão. Talvez no futuro.
Folha - Se você pudesse, gostaria
de voltar a viver no Sudão?
Nazer - Não sei dizer. Gostaria de
rever minha família, mas quero
estar livre para viver onde quiser.
No fundo, gostaria de voltar a viver nas montanhas de Nuba, que
são o meu lugar, mas acho que seria melhor viver em Londres, para
poder dar um futuro melhor para
meus filhos, se eu os tiver.
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