São Paulo, quarta-feira, 07 de junho de 2000


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Conceito de democracia está em xeque

BARBARA CROSSETTE
DO "THE NEW YORK TIMES"

Já faz anos que os EUA classificam alguns países -caso de Iraque e Coréia do Norte- como "Estados irresponsáveis" ou "bandidos". Agora, à medida que o mundo se torna mais democrático -mais de 60% dos países têm líderes eleitos-, surge um conceito mais complexo: o das "democracias irresponsáveis".
São os países cujos governos democráticos descarrilam, descambando para a agressividade em relação a países vizinhos e deixando de cumprir a promessa de que a democracia fomentará liberdade.
Não é fácil para as democracias consolidadas saber como lidar com esse novo tipo de "Estado irresponsável", nem mesmo reconhecê-lo. Afinal, é tentador pressupor que, quando outros países optam por eleger líderes em pleitos livres, a decisão será automaticamente seguida de coisas boas.
O caso do Peru é o exemplo mais recente. Nesse país um presidente eleito, Alberto Fujimori, reescreveu a Constituição, reduziu os poderes do Congresso e limitou as liberdades políticas, tudo em nome da ordem social.
Agora ele reivindica um terceiro mandato presidencial, após uma eleição tão repleta de irregularidades que a oposição a boicotou e a missão de observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA) não a aprovou.
O que o mundo deve fazer? Dar as costas ao Peru? Impor sanções? Quando os eleitores austríacos aproximaram o xenófobo Joerg Haider do poder, a Europa se uniu e o relegou ao ostracismo. No Peru, porém, algo semelhante parece ser pouco provável.
Já ficou claro há algum tempo que não existe mais uma única definição universalmente aceita do que é democracia, e, portanto, torna-se difícil dizer quando um país deixa de ser uma democracia.
Considere-se a diversidade de formas existente no Peru, na Rússia, na Índia, no Zimbábue, nos EUA, na Áustria e no Japão. Além disso, há um consenso de que eleições não constituem garantia de livre expressão ou justiça.
No entanto, a capacidade que tem um país de se descrever como democracia frequentemente lhe vale solidariedade entre os eleitores ocidentais. Na realidade, não é de hoje que líderes eleitos utilizam as formas de democracia como maneira política de enganar aqueles, no exterior, que se arrogam o direito de avaliar sua legitimidade.
Em toda a América Latina, as Constituições são rotineiramente reescritas para ampliar os mandatos e poderes dos presidentes.
Democracias imperfeitas sempre existiram; o próprio caráter confuso da forma política é um convite à imperfeição. Os EUA já tiveram segregação racial, prisão de norte-americanos de origem japonesa e repetidos episódios de brutalidade policial. Os europeus divergem quanto aos limites da liberdade de expressão e ao tratamento às minorias.
No entanto, os exemplos podem ser vistos como falhas na realização dos ideais da democracia, e não como sua negação. Um problema mais fundamental surge quando as instituições são demasiado fracas para remediar essas falhas -um papel frequentemente desempenhado pelos Legislativos eleitos e, nos EUA, pelo sistema judiciário.
Poderíamos afirmar que uma democracia adentra no território "irresponsável" quando um país não consegue impor limites às manobras de poder de um líder eleito que opta por não entregar o poder e, para isso, reescreve as regras do jogo. Um dos corolários quase sempre é a opressão de algum tipo, muitas vezes começando pela oposição política. E a mistura se torna letal, como acontece na Iugoslávia, quando questões de raça, etnia ou religião são utilizadas para inflamar as paixões políticas.
Susan Kaufman Purcell, presidente da Sociedade das Américas, em Nova York, classifica os governos de Hugo Chávez, na Venezuela, e de Fujimori, no Peru, como "democracias imperfeitas", acrescentando que, "muitas vezes, é difícil diferenciar as democracias imperfeitas das falsas democracias". Para ela, uma democracia precisa ter "a possibilidade de um líder em exercício ser destituído do poder por meio do voto, por meio de um processo eleitoral que dê espaço à concorrência".
Michael Joseph Smith, professor de ciência política na Universidade de Virgínia (EUA), disse que as democracias fortes "ainda não refletiram o suficiente sobre a manutenção da democracia".
No caso do Peru, disse, os EUA poderiam ter dado apoio maior à OEA. Em lugar disso, primeiro endossaram a avaliação incomumente enfática da OEA segundo a qual a eleição teve falhas. Num segundo momento, porém, recuaram. Para Smith, foi uma mensagem negativa à América Latina. "Precisamos mobilizar muito mais as organizações multilaterais", disse Smith. "A democracia exige cuidados constantes."


Tradução de Clara Allain


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