São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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UMA VISÃO ÁRABE

Ariel Sharon, um ilusionista

RAMI G. KHOURI
DA AGENCE GLOBAL, EM BEIRUTE

A saúde de Ariel Sharon parece finalmente ter posto fim à carreira política ativa de um homem largamente saudado no Ocidente como "pacificador" ousado e inovador. A visão que se tem dele no mundo árabe é consideravelmente diferente e bem menos aduladora. Em sua vida política, diferentemente de suas escapadas militares, Sharon, quando não conseguiu forjar estratégias e políticas bem-sucedidas, frequentemente empregou táticas de brilho efêmero. Ele era um ilusionista político que subiu ao palco num momento em que seu povo precisava do tipo de força emocional e poder reconfortante que ele possuía, mas ele deixa para trás uma paisagem confusa, fraturada e incerta, tanto em Israel quanto na Palestina.
Sharon encerra sua vida pública tendo manifestamente deixado de realizar a única coisa que afirma ter sido aquela pela qual lutou com mais afinco durante toda sua vida: assegurar a segurança e aceitação de Israel no Oriente Médio. Em última análise, a confiança que ele depositou na força militar e na ousadia tática garantiu momentos de alto teor dramático, mas foi estrategicamente falha.
Ele não é tanto um homem de paz quanto um criador de caos, como seus sucessores no poder em Israel não tardarão a constatar. Sharon foi hospitalizado na semana passada durante um episódio de política externa que constitui um testemunho ironicamente chocante da combinação mortífera de seu amadorismo político e da confiança que ele depositava no emprego da força. Ele estava freneticamente, quase histericamente recriando no norte da faixa de Gaza o mesmo tipo de "zona de segurança" que se mostrou um fracasso colossal quando ele a experimentou no sul do Líbano, mais de duas décadas atrás.
Em 1982, o Exército israelense, sob seu comando, ocupou boa parte do sul do Líbano, onde permaneceu até 2000, recorrendo a todas as combinações possíveis de força bruta, intimidação política, forças libanesas que agiam em seu nome e amplas e irrestritas medidas punitivas, morte e destruição para reprimir uma população libanesa que rejeitava a ocupação pelo Exército israelense. Israel finalmente retirou suas forças unilateralmente, na primavera de 2000. Sharon nunca aprendeu a lição do sul do Líbano: que apenas um vizinho árabe verdadeiramente livre e soberano pode ser um vizinho pacífico de Israel.
Sua exageradamente elogiada e divulgada retirada unilateral da faixa de Gaza nem propiciou um avanço no processo de paz com os palestinos nem trouxe paz e tranquilidade a essa fronteira com Israel. Foi uma retirada de mágico, um ato de ilusionismo, sendo que Israel ainda controla muitas dimensões da vida, da movimentação e da economia palestinas na faixa de Gaza. Sua construção do muro de separação que vem isolando cada vez mais algumas comunidades palestinas, incluindo Belém e Jerusalém Oriental, a parte árabe da cidade, vem se somando à ampliação contínua que ele promoveu dos assentamentos judaicos na Cisjordânia, tendo o efeito de elevar o ressentimento palestino a novos níveis -o que, em última análise, se traduz em novas formas de resistência.
Incapaz de ou indisposto a aceitar o consenso global de que, em última análise, Israel deve retirar-se de todos os territórios ocupados em 1967, Sharon jogou por terra as negociações de território por paz que estavam levando à solução de dois Estados. Ele substituiu essa abordagem por seu unilateralismo próprio: a construção da barreira de separação, a retirada de Gaza, o assassinato constante de militantes políticos e o hábito de decidir quando e se os palestinos podiam ser incluídos em discussões políticas.
Sharon se negou a tratar com Iasser Arafat, mas depois mostrou que não podia fazer nada quando se viu diante do recém-eleito presidente palestino, Mahmoud Abbas, que fez sua campanha com base na plataforma de pôr fim à resistência armada e de negociar a paz com Israel. Incapaz de fazer a paz com os palestinos, ele iludiu os ingênuos americanos. Sharon vendeu a imagem de "pacificador" a uma Casa Branca tão desinformada e beligerante quanto ele quando se tratava de lidar com os palestinos dentro dos limites impostos pelas leis internacionais, o que dirá da decência humana comum.
Ariel Sharon deixa para trás uma paisagem ensangüentada e fraturada, definida pela tensão e os confrontos com os palestinos, e a confusão no seio da sociedade israelense. Isso acontece porque, em última análise, suas políticas mostraram ser mais bravatas do que coragem real, baseada na honestidade.
Durante o último quarto de século ele ocupou cargos que definiram as políticas israelenses de defesa, segurança e ocupação, a ampliação dos assentamentos israelenses e, mais recentemente, a política externa global.
Ele empregou esse tempo para gerar comunidades palestinas fragmentadas, com freqüência destituídas de líderes, compostas de palestinos comuns irados e revoltados.
O trabalho que fez em sua vida agora se voltou contra ele sob diversas formas, incluindo a situação de anarquia vigente em muitas partes da Palestina, uma liderança palestina fraca e desacreditada, a incerteza em relação ao status futuro da faixa de Gaza, a grande probabilidade de o Hamas e outros setores islâmicos se saírem muito bem nas eleições parlamentares palestinas deste mês e, por fim, o aumento do sentimento antiisraelense em todo o mundo árabe e mesmo fora dele.
Se a medida de um homem é dada pelos resultados do trabalho de sua vida, então Ariel Sharon, nesta semana, deve ser visto como um grande promotor do caos, da confusão, da incerteza e do medo. Encerrar esse legado numa estratégia que leva uma nação inteira a tentar retirar-se atrás de uma muralha não apenas constitui um fracasso político grande e duradouro, como também uma grande tragédia humana envolvendo guerreiros audaciosos que não conseguiram parar de guerrear e que, quando as rédeas do poder lhes foram entregues, se voltaram a truques de ilusionismo.


Rami G. Khouri é editor-chefe do jornal "Daily Star", de Beirute, publicado em todo o Oriente Médio juntamente com o "International Herald Tribune".
Tradução de Clara Allain


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