São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

Guerra de Bush confunde esquerda e direita

PAUL BERMAN
DA ""DISSENT"

Um amigo meu se inclinou em minha direção por cima da mesa do bar e disse: ""Você falou que a Guerra do Iraque é uma guerra antifascista. Você chegou ao ponto de dizer que é uma guerra de esquerda, uma guerra de libertação. Que jeito de falar! Mas pouca gente da esquerda concordaria com você".
""Mentira!", respondi. ""Tirando X, Y e Z, cujos nomes esquerdistas você já conhece bem até demais, o que você acha de Adam Michnik, na Polônia? E Vaclav Havel? Eles são alguns dos heróis dos nossos tempos. De qualquer jeito, quem é que está lutando no Iraque neste momento? A coalizão é liderada por um direitista do Texas, o que é uma pena; mas no segundo escalão da liderança está o premiê do Reino Unido, que é socialista -mais ou menos-, e, no terceiro, o presidente da Polônia, um comunista! Ou ex-comunista, pelo menos. Um direitista texano e dois europeus mais ou menos de esquerda. De qualquer maneira, essas categorias, esquerda e direita, estão caindo por terra. E quem você vê como sendo o líder da esquerda mundial? Jacques Chirac? Odeio lhe dizer isso, mas ele é conservador."
Meu amigo insistiu. ""Mesmo assim, a maioria das pessoas pensa diferente. Você percebe isso, certo? E por que você acha que as pessoas discordam de você?"
Era uma pergunta agressiva, e eu respondi à altura.
""Por que as pessoas da esquerda não enxergam a situação sob a minha perspectiva? Exceto as que enxergam, é claro. Vou lhe dar seis razões. As pessoas da esquerda não conseguem enxergar a natureza antifascista da guerra porque..." e minha mão se ergueu, pronta para dar seis socos sobre a mesa, dando ênfase à força poderosa de meus argumentos.
""A esquerda não enxerga porque" -soco!- ""George W. Bush é um político excepcionalmente repulsivo, exceto para seus próprios seguidores, e a repulsa que sentem cega as pessoas. E assim, em sua cegueira, elas não estão conseguindo identificar os contornos principais da realidade. Elas olham para o Iraque e vêem o sorrisinho complacente no rosto de George W. Bush. Chegam a sentir uma espécie de "schadenfreude", ou satisfação perversa, diante dos erros e fracassos dele. É um exemplo moderno daquilo que antigamente era conhecido como "consciência falsa"."
Soco na mesa! ""A esquerda não enxerga porque um monte de pessoas de outro modo inteligentes decidiu, a priori, que todos os maiores problemas do mundo têm sua origem nos Estados Unidos -mesmo quando são problemas que não vêm de lá. É uma atitude que, 60 anos atrás, teria impedido essas mesmas pessoas de entender o que queriam os fascistas da Europa, também."
Soco na mesa! ""Outra razão é que muitas pessoas supõem que qualquer espécie de movimento anticolonial deve ser admirável ou, no mínimo, aceitável. Ou então elas pensam que, no mínimo, não devemos fazer mais do que expressar uma repreensão leve, mesmo no caso de um movimento que, como o partido Baath, foi fundado sob influência nazista. Por sinal, foi fundado em 1943."
Soco na mesa! ""A esquerda não enxerga porque muita gente, num esforço bem-intencionado para respeitar as diferenças culturais, concluiu que, por razões que ninguém entende, os árabes devem gostar de viver sob ditaduras sanguinárias, ou então não serão capazes por mais uns 500 anos, e que, portanto, os liberais árabes devem ser vistos como sendo de alguma maneira pouco autênticos. Ou seja, muita gente, levada por seus próprios nobres princípios de tolerância cultural, acabou se atendo a atitudes que só podem ser qualificadas como racistas em relação aos árabes.
""Antigamente, a esquerda era universalista: pensava-se que o mundo inteiro, algum dia ia querer viver de acordo com os mesmos valores fundamentais e que todo o mundo deveria ser ajudado a fazer exatamente isso. Mas não mais. Hoje em dia, num espírito de tolerância igualitária, as pessoas pedem: "Democracia social para os suecos!'; "tirania para os árabes!". E isso por acaso é uma atitude de esquerda? E, por falar nisso, não se ouve a esquerda falar muito sobre os não-árabes em países como o Iraque, certo? Antigamente a esquerda real era defensora das populações minoritárias, pessoas como os curdos. Não mais! A esquerda, meu amigo, abandonou os valores da esquerda -tirando alguns poucos entre nós, é claro."
Soco na mesa! ""Mais uma razão: muitas pessoas crêem honestamente que os problemas de Israel com os palestinos representam algo mais do que uma simples disputa miserável em torno de fronteiras e reconhecimento -acham que os problemas de Israel representam algo muito maior, um aspecto singularmente diabólico do sionismo, algo que explica a raiva e a humilhação sentidos por muçulmanos do Marrocos à Indonésia. Muitas pessoas sucumbiram às fantasias anti-semitas sobre a qualidade cósmica do crime judaico e não conseguem pensar em outra coisa.
""Basta olhar para as discussões que rolam mesmo entre pessoas que se consideram da esquerda democrática, a esquerda boa -um repisar constante, obsessivo, sobre os pecados cometidos por Israel, enquanto muito pouco é dito sobre os movimentos de influência fascista que provocaram centenas de milhares ou até milhões de mortes em outras partes do mundo muçulmano. Se você parar para pensar nisso, vai perceber que as distorções são muito grandes. Veja o caso de nossas grandes revistas liberais, de grande influência -publicam um artigo após outro sobre os crimes e as burrices cometidos por Israel, e até mesmo algumas declarações em favor de acabar com Israel, e, ao mesmo tempo, quase nada sobre o sofrimento dos árabes no resto do mundo. E menos ainda é dito sobre os liberais árabes -nossos camaradas, que foram praticamente abandonados à própria sorte. O que você acha disso, meu amigo? Existe um nome para isso, para essa distorção sistemática. É uma coisa que nós, marxistas, na época em que éramos marxistas, costumávamos chamar de ideologia."
Soco na mesa! ""A esquerda não enxerga porque, de qualquer maneira, muitas pessoas são cegas quando se trata do anti-semitismo presente em outras culturas, cegas propositalmente. Elas não se atrevem a reconhecer até que ponto as doutrinas de tipo nazista sobre o caráter sobrenatural do mal judaico influenciaram os movimentos políticos de massa em grandes partes do mundo. Ainda é 1943 numa parte enorme do mundo, e as pessoas não se dão conta disso, simplesmente não conseguem detectar a natureza fascista de muitos movimentos de massa e partidos políticos de todo tipo. Especialmente no mundo muçulmano."
Seis socos na mesa. Meu amigo fez cara de espanto. Sua incredulidade me levou a continuar.
""Apesar disso", insisti, ""se as pessoas de boa fé, como você, abrissem seus olhos de esquerda bem abertos, enxergariam que o partido Baath é quase um movimento fascista clássico, e o movimento islâmico radical, também, só que de maneira um tanto diferente. São duas variantes de um impulso único que, por acaso, é o legado fascista e totalitário que a Europa deixou para o mundo muçulmano moderno. Se as pessoas como você despertassem, veriam que a guerra contra os movimentos islâmicos radicais e os baathistas, no Afeganistão exatamente como no Iraque, é uma guerra contra o fascismo."
Fui ficando cada vez mais indignado.
""É uma tragédia que você não enxergue isso! Tragédia para os afegãos e os iraquianos, que precisam de mais ajuda do que estão recebendo. Tragédia para os liberais legítimos em todo o mundo muçulmano. Tragédia para os soldados americanos, britânicos, poloneses e todo o mundo que tem ido ao Iraque, os voluntários das ONGs e as forças estrangeiras de ocupação, que são obrigadas a lutar duro para combater niilistas da pior espécie e que vêm recebendo pouquíssimo apoio ou mesmo solidariedade moral das pessoas que se descrevem como antifascistas das partes mais ricas e mais gordas do mundo.
""É uma tragédia para a esquerda -a esquerda mundial, esta esquerda nossa que, ao deixar de exercer um papel importante no antifascismo de nossos tempos, está neste momento cometendo um erro histórico gigantesco. E não será pela primeira vez, meu amigo! No entanto, se a esquerda do mundo inteiro assumisse esta luta específica como sua, toda a natureza dos acontecimentos no Iraque e em toda a região poderia ser influenciada de maneira muito útil, e os muitos erros de Bush poderiam ser corrigidos, e a luta poderia avançar."
Meu amigo arregalou os olhos, talvez por espanto, talvez por pena de mim. Ele falou: ""Será que as Nações Unidas e o direito internacional não significam nada para você? Você acha que é tudo bem os Estados Unidos saírem por aí fazendo o que bem entendem, ignorando o resto do mundo?"
""Sou totalmente a favor da ONU e do direito internacional", respondi. ""Sou defensor deles. Ou, melhor dizendo, gostaria de defendê-los. Seria melhor travar uma guerra antifascista com um apoio da ONU que fosse mais do que algo dado a contragosto. Melhor politicamente, melhor em termos militares. Melhor em termos dos precedentes que seriam criados. Melhor para expressar os princípios liberais em jogo. Se as coisas fossem do jeito que gostaria, é assim que teríamos começado a fazer esta guerra. Mas o que quero não vale muito. Fomos obrigados a optar entre apoiar a guerra ou nos opormos a ela -apoiar a guerra em nome do antifascismo ou nos opormos a ela em nome de algum conceito de lei internacional. Antifascismo sem lei internacional, ou lei internacional sem antifascismo. Escolha lamentável -mas, infelizmente, somos obrigados a optar."
Meu amigo declarou: ""Sou a favor da ONU e da lei internacional, e acho que você traiu a esquerda. Virou um neoconservador!".
""Sou a favor da derrubada de tiranos", eu respondi. ""Desde quando derrubar o fascismo virou forma de trair a esquerda?"
""Mas o Bush não é mais ou menos fascista? Diga a verdade!"
Dessa vez fui eu quem arregalou os olhos. ""Você não faz a menor idéia do que seja o fascismo", respondi. ""Sempre pensei que a consciência aguda da opressão extrema fosse a característica mais marcante de um coração de esquerda. Valas comuns, 300 mil iraquianos desaparecidos, uma população esmagada por 35 anos de botas baathistas pisando sobre suas caras -é isso que é fascismo! E você acha que alguns contratos corruptos dando vantagens ilegais aos amiguinhos de Bush na Halliburton, algumas frases retrógradas tiradas da Bíblia, os cortes ridículos nos impostos que Bush decretou e os incentivos que ele ofereceu aos super-ricos são a mesma coisa? Que não dá para distinguir tudo isso do fascismo? O pensamento de esquerda deveria encarnar a capacidade de avaliar o quadro maior. Quem virou traidor da esquerda é você!"
Mas esse argumento não fez o menor sentido para ele. Então nada nos restou a fazer a não ser bater um na cabeça do outro com nossos respectivos copos.


Paul Berman é membro do conselho editorial da revista "Dissent" e autor de ""Terror and Liberalism".

Tradução de Clara Allain


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