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ARTIGO
No coração de Bagdá, sem humildade nem honra
ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT", EM BAGDÁ
Começou com uma série de
vibrações violentas, um som
ruidoso, como o de passos de um
gigante, que abalou meu quarto
fisicamente. Os estrondos se repetiam. Decidi não sair da cama e
tentei imaginar a causa do barulho. Era como o momento em
"Parque dos Dinossauros" em
que turistas ouvem pela primeira
vez os passos do dinossauro.
Pela minha janela, na margem
leste do Tigre, vi um canhão antiaéreo iraquiano disparando do
teto de um edifício de quatro andares a um quilômetro e meio de
distância, diretamente através do
rio, contra algo do outro lado. E as
passadas de gigante voltaram, um
som tão intenso que fez com que
os alarmes contra roubo de mil
carros estacionados à margem do
rio disparassem.
E foi só quando desci até a estrada, ao raiar do dia, que descobri o
que havia acontecido. A Guerra
do Golfo (1991) fora a última vez
em que eu ouvira o som dos disparos da artilharia americana. E
lá, a apenas algumas centenas de
metros de distância da minha posição, do lado oposto
do Tigre, os avistei. Inicialmente se pareciam com pequenas centopéias blindadas, em movimentos abruptos, pequenas criaturas que
vieram inspecionar uma terra desconhecida e procurar
por água.
Era preciso prestar atenção às centopéias para compreender que cada uma das
criaturas era um veículo de
combate Bradley, que sua
cauda era um grupo de fuzileiros navais procurando
proteção e avançando em direção à margem do Tigre.
Houve uma saraivada de
tiros americanos, e o ruído
agudo de granadas propelidas por foguete, acompanhadas de jatos de fumaça
branca emitidos pelas armas
dos soldados e milicianos
iraquianos protegidos em
suas trincheiras. A cena era
tão rápida e simples que deixaria qualquer observador
atônito.
De fato, a visão era tão extraordinária -a despeito de
tanta bazófia do Pentágono,
de tantas promessas de
Bush- que se podia de algum modo esquecer os precedentes que ela estava estabelecendo para a história futura do Oriente Médio.
Em meio aos disparos das
armas e às balas que cruzavam o rio, era preciso olhar
para mais longe, para as
águas verdes pálidas de um
dos rios mais ancestrais, a
fim de compreender que um
Exército ocidental envolvido
em uma cruzada moral penetrara o coração de uma cidade árabe pela primeira vez
desde que o general Allenby
conquistou Jerusalém em
1918.
Mas Allenby entrou em Jerusalém a pé, exibindo reverência diante do local de nascimento de Cristo; ontem, a
incursão americana a Bagdá
não exibia nenhuma humildade e nenhuma honra.
Os fuzileiros navais e as
forças especiais que se posicionavam na margem oeste
do rio entraram no maior
dos palácios de Saddam
Hussein, filmaram seus lavatórios e banheiros e se deitaram para descansar no gramado antes de avançarem para o
hotel Rashid e disparar contra soldados e civis.
Era possível ver os A-10, aviões
norte-americanos de duas turbinas, disparando suas balas de urânio contra a margem oposta do
rio.
Da margem leste, vi os fuzileiros
navais correrem para uma trincheira com os fuzis em posição de
fogo, procurando soldados iraquianos. Mas os adversários deles
continuaram a disparar da planície lamacenta mais ao sul até que,
um depois do outro, os vi correr
para salvar suas vidas. A maioria
deles carregava suas armas, alguns deixaram de correr e passaram a caminhar, exaustos, e outros saltaram para a água do Tigre, afundando até os joelhos, ou
mesmo até o pescoço.
Três soldados abandonaram
uma trincheira com as mãos para
cima, diante de um grupo de fuzileiros navais. Mas outros continuaram lutando. Os passos de gigante que marcavam os disparos
dos canhões americanos prosseguiram por mais de uma hora.
Depois os A-10 voltaram, e um caça-bombardeiro F-18, que causou
um rio de fogo nas trincheiras
ocupadas pelos iraquianos.
Parecia que Bagdá cairia dentro
de algumas horas. Mas o dia seria
caracterizado pelo mais curioso
dos atributos da guerra, uma mistura enlouquecida de normalidade, morte e farsa absurda.
Pois no momento mesmo em
que os americanos abriam caminho a balas rumo ao norte, acompanhando o rio, e os F-18 voltavam para um novo bombardeio
contra a margem, o ministro da
Informação iraquiano aparecia
para conceder uma entrevista no
telhado do hotel Palestine, a cerca
de um quilômetro dos combates.
Enquanto obuses explodiam,
Mohammed Said al Sahaf anunciava para talvez cem jornalistas
que tudo era um exercício de propaganda, que os americanos já
não estavam no controle do aeroporto de Bagdá, que os repórteres
deveriam "verificar seus fatos e
voltar a verificá-los".
Afortunadamente, o petróleo
queimando, as explosões de bombas e a fumaça obscureciam a
margem oeste do rio, de modo
que a verificação dos fatos não podia mais ser realizada simplesmente olhando por sobre o ombro de Sahaf.
O que o mundo queria saber, é
claro, era se Bagdá estava prestes a
ser ocupada, se o governo iraquiano se renderia e -a pergunta-das-perguntas- onde estava
Saddam. Mas Sahaf usou seu tempo para condenar o canal de TV
árabe Al Jazeera por sua cobertura favorável aos EUA, e para criticar os americanos por usarem "os
saguões e os salões" de Saddam
para fazer "propaganda barata".
"Os americanos serão enterrados
aqui", gritou, por sobre o ruído da
batalha. "Não acreditem nesses
invasores. Serão derrotados."
Quanto mais falava, maior a
vontade de interrompê-lo para
pedir: "Espere, senhor ministro,
olhe para trás". Mas é claro que
não é assim que as coisas acontecem. Por que não percorríamos a
cidade de carro?, sugeriu.
Foi o que fiz. Os ônibus de dois
andares da empresa municipal
continuavam operando e, mesmo
que as lojas estejam fechadas, as
barracas de comidas e os camelôs
continuam abertos. Perto da rua
Iasser Arafat, os homens estavam
reunidos em casas de chá para
discutir a guerra.
Decidi comprar frutas, e o lojista não parou de contar meus dinares todos, os 11.500 deles, quando um jato norte-americano cruzou a rua e despejou sua carga letal a mil metros de distância, com
uma explosão que alterou a pressão em nossos ouvidos.
Cada esquina era vigiada por
um grupo de milicianos e, quando cheguei à lateral do Ministério
do Exterior, na margem oeste do
rio, acima da posição dos fuzileiros navais, uma guarnição de artilharia iraquiana estava disparando um canhão de 120 milímetros
contra os norte-americanos dos
trilhos de um bonde.
Uma hora e meia mais tarde, os
americanos haviam avançado pela margem do rio, do sul, e havia o
perigo de que capturassem a sede
do velho Ministério da Informação. Do lado de fora do hotel Rashid, eles abriram fogo contra civis
e milicianos, sem distinção, derrubando um motociclista e disparando contra um fotógrafo
da agência de notícias Reuters
que escapou com o carro furado de balas.
Em toda Bagdá, os hospitais estavam inundados de feridos, muitos deles mulheres e crianças atingidas pelos fragmentos das bombas. Ao cair da noite, os norte-americanos estavam usando os F-18 em missões de apoio próximo
aos fuzileiros navais, tão confiantes em sua destruição dos canhões
antiaéreos iraquianos que alguns
deles podiam ser vistos claramente percorrendo os céus cinzentos e
marrons em pares, sobre o centro
de Bagdá, fazendo curvas preguiçosas para o sul e para o oeste, enquanto o fogo cruzado de artilharia continuava.
Na metade da tarde, os americanos localizaram um depósito de
munição na margem ocidental do
rio, não muito longe do palácio
presidencial -um dos três que
ocuparam ontem- e o explodiram em um coluna de chamas de
centenas de metros de altura.
Por horas, mais tarde, podiam-se ouvir projéteis silvando em
meio à conflagração, às vezes explodindo no ar. Enquanto cuidavam disso e claramente
tentando enraivecer Saddam e seus ministros, os
americanos transmitiam
imagens em tempo real de
sua exploração do palácio
republicano, à margem do
Tigre, mostrando o assento
do lavatório presidencial, o
banheiro de paredes de
mármore e torneiras douradas -iluminado por
candelabros-, e soldados
das forças especiais tomando um banho de sol,
ainda que não houvesse
sol, no gramado presidencial.
Será isso o que chamam
de "rico em história"? O general Stanley Maude invadiu o Iraque em 1917 e ocupou Bagdá. Repetimos o
espetáculo em 1941, quando Rashid Ali decidiu dar o apoio
do Iraque à Alemanha nazista. Os
britânicos, australianos e árabes
"libertaram" Damasco dos turcos
em 1918. Os israelenses ocuparam
Beirute em 1982 e viveram -se
bem que nem todos- para se arrepender disso.
Agora, os Exércitos dos EUA e,
muito atrás deles, os britânicos,
um pálido fantasma do Exército
de Maude, avançam rumo à capital árabe mais a nordeste, para dominar uma terra que tem fronteiras com Irã, Turquia, Jordânia e
Arábia Saudita.
Quando a noite caiu, passei por
um pequeno muro de concreto
no extremo leste da grande ponte
Rashid sobre o Tigre. Seus três defensores iraquianos tinham alinhado os lançadores de granadas
de origem soviética em uma linha
precisa sobre o parapeito.
Centenas de tanques e veículos
blindados norte-americanos percorriam a rota do Tigre e entravam em Bagdá, do sudoeste, e esses três iraquianos -dois membros da milícia do partido Baath e
um policial- estavam lá, prontos
para defender a margem leste
contra o maior Exército que o homem já viu.
Isso em si dizia todo o necessário, pensei, tanto sobre a coragem
dos árabes quanto sobre o fato de
que não lhes resta esperança.
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