São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

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ARTIGO

Morte do Estado impulsiona violência sem fim no Iraque

Apesar da guerra civil em curso, o que melhor explica a insegurança no país não é o ódio sectário, mas o colapso das leis causado pela ocupação militar dos EUA

Mohammed Jalil - 20.mar.2007/Efe
Homem caminha perto de carro-bomba que explodiu em Bagdá


TOBY DODGE

A publicação do relatório do Grupo de Estudos sobre o Iraque, em dezembro, e o discurso do presidente George W. Bush sobre a política americana para aquele país, em 10 de janeiro, marcam uma mudança decisiva na postura em relação ao Iraque. Essa aceitação, pelos círculos políticos, de uma avaliação realista e necessariamente pessimista deve ser recebida com agrado, embora tenha demorado quase quatro anos para prevalecer.
Mas o reconhecimento de que a situação é precária, e está piorando, oculta desacordos e confusão quanto às causas subjacentes da violenta guerra civil que agora domina o Iraque, e portanto quanto às possíveis soluções para ela.
A fim de explicar a evolução da violenta instabilidade no Iraque depois da queda de Saddam Hussein, o colapso do Estado iraquiano tem importância muito maior do que a crescente antipatia entre as comunidades do país, ou mesmo do que a inépcia da nova elite dirigente iraquiana. A entrada das tropas americanas em Bagdá, em 2003, resultou na morte do Estado iraquiano. Diante do colapso das leis, que é comum quando há uma mudança violenta de regime, os EUA não dispunham de efetivos militares suficientes para controlar a situação.
Depois de três semanas de violência e saques, a capacidade administrativa do Estado foi destruída; 17 dos 23 edifícios que abrigavam ministérios em Bagdá foram totalmente arrasados. Os saqueadores começaram levando itens portáteis e valiosos, como computadores, e depois carregaram a mobília, e até pedaços dos prédios.
Quando cheguei a Bagdá, um mês depois das forças americanas invasoras, os saqueadores estavam sistematicamente removendo os cabos elétricos das paredes de edifícios que um dia haviam pertencido ao governo, para vendê-los como refugo. Depois da destruição da infra-estrutura do governo em todo o país, veio o processo de remoção do partido Baath, que resultou em expurgo das camadas mais elevadas de servidores públicos, privando um total estimado entre 20 mil e 120 mil pessoas de seus empregos.
A capacidade administrativa do Estado já havia sido solapada por mais de uma década de sanções, três guerras em 20 anos e três semanas de saques. O processo de remoção do partido Baath eliminou a pouca capacidade que restava, apagando a memória institucional e tirando de cena boa parte dos funcionários capacitados.

Falência
O Iraque vive hoje em situação de falência do Estado. Diante desse pano de fundo, a instabilidade é propelida por dois problemas interligados, que causaram a profunda insegurança e violência que agora dominam o país. O completo colapso da capacidade do Estado e a dissolução do Exército iraquiano pelos Estados Unidos geraram um agudo vácuo de segurança, que foi aproveitado por grupos dispostos a usar a violência em benefício próprio. O crime organizado se tornou uma fonte dominante de insegurança. Grupos difusos que se envolveram com a insurgência em nome do nacionalismo iraquiano, cada vez mais insuflado de islamismo militante, causaram as maiores perdas de vidas entre os soldados da coalizão e das forças de segurança iraquianas.
No começo de 2006, surgiu uma nova crise com potencial ainda maior de desestabilização: a guerra civil. A explosão que destruiu a mesquita de al-Askariyya, na cidade iraquiana de Samarra, em 22 de fevereiro do ano passado, representa um marco, e exacerbou a violência sectária já crescente e as transferências de população. O colapso do Estado, e o vácuo de segurança resultante, que conduziram o Iraque à guerra civil, criaram, ou pelo menos propeliram, diferentes conjuntos de forças que usam a violência para seus próprios fins.
O primeiro deles envolve quadrilhas criminosas de poderio industrial, as quais aterrorizam o que ainda resta da classe média iraquiana. Muito mais séria do que a incapacidade do governo para elevar a produção de eletricidade ou estimular o emprego, a capacidade que as quadrilhas criminosas continuam a exibir indica a falência do Estado.
O segundo conjunto de organizações que estão tirando proveito do colapso do Estado envolve os muitos grupos diferentes que formam a insurgência iraquiana, cujos efetivos combatentes estão estimados entre os 20 mil e os 50 mil homens.
A violência que irrompeu depois da destruição da mesquita de al-Askariyya significa que as milícias iraquianas, com efetivos estimados entre os 60 mil e os 102 mil soldados, se tornaram o principal propulsor na queda do Iraque à guerra civil.

Categorias de milícias
As milícias podem ser divididas em três categorias amplas, a depender de sua coerência organizacional e de sua relação para com a política nacional. A primeira e mais disciplinada consiste das duas milícias curdas integradas ao Partido Democrático do Curdistão e à União Patriótica do Curdistão. A segunda categoria compreende os grupos criados no exílio que se transferiram ao Iraque depois da queda de Saddam. O mais poderoso é conhecido como Brigada Badr, e serve como braço armado do Conselho Supremo da Revolução Islâmica no Iraque, com efetivos estimados em 15 mil homens.
A colonização pela Brigada Badr de boa parte das forças de segurança (especialmente a polícia e as unidades paramilitares associadas ao Ministério do Interior) fez muito por reduzir a legitimidade do poder já bastante limitado das forças de defesa da ordem comandadas pelo Estado. A terceira categoria de milícia envolve grupos criados no Iraque depois da mudança de regime. O maior e mais coerente destes é o Jeish al-Mahdi, com 50 mil integrantes, estabelecido por Muqtada al-Sadr, líder religioso radical xiita. Recentemente, os comandantes do Exército Mahdi se tornaram mais independentes de Sadr, em termos financeiros, levantando dinheiro por meio de seqüestros, extorsões e contrabando de armas e petróleo.
O domínio das milícias não foi um resultado inevitável da mudança do regime, mas uma resposta ao colapso do Estado: para estabilizar o Iraque, é preciso um governo capaz de exercer monopólio sobre os poderes de coerção, e dotado de capacidade administrativa que lhe confira legitimidade.

Sem atalho
Infelizmente, não existe atalho para fazê-lo. Mesmo que seja possível, a tarefa demoraria anos e exigiria o investimento de recursos vultosos. Desde 2003, quando Paul Bremer assinou o acordo de 15 de novembro, o governo dos Estados Unidos terceirizou o trabalho de reconstruir "uma população dominada por um pesadelo hobbesiano" a um punhado de iraquianos inexperientes e até então exilados, há muito distantes do país.
As duas eleições e o referendo de 2005 tinham por objetivo propiciar legitimidade democrática à elite iraquiana. Mas a natureza do sistema eleitoral adotado, a maneira pela qual os candidatos decidiram travar as eleições e a posição constitucional do primeiro-ministro se combinaram para dissolver a coerência política e a eficiência administrativa do governo. O novo sistema eleitoral iraquiano, baseado em grandes coalizões de múltiplos partidos, é um dos grandes problemas políticos do governo.
Porque o presidente exerce papel principalmente cerimonial, o posto de primeiro-ministro se tornou o principal veículo para a promoção de coerência governamental. Mas o primeiro-ministro ocupa uma posição fraca, política e eleitoralmente. O poder real está investido nos partidos que disputam as eleições. Para eles, o sucesso eleitoral no seio de coalizões de grande porte é recompensado pela divisão dos espólios do governo e pelos empregos e os recursos que isso propicia.
O premiê Nuri al-Maliki não domina o gabinete. Na verdade, é uma espécie de agente, intermediando negociações em sua coalizão, a Aliança por um Iraque Unido, e entre o grupo, o embaixador americano e as demais coalizões. Sob um pano de fundo de colapso do Estado e guerra civil, tanto o Grupo de Estudos sobre o Iraque quanto Bush argumentam que "só os iraquianos podem pôr fim à violência sectária". Mas, diante do colapso da estrutura de Estado, a capacidade da sociedade de influenciar os acontecimentos de maneira positiva desaparece rapidamente.
A principal sugestão do Grupo de Estudos sobre o Iraque seria ampliar de maneira dramática o poder da elite que atualmente governa o Iraque. Os líderes seriam forçados a assumir o papel de construtores de um Estado por meio de uma combinação de medidas de estímulo e repressão, transferência mais ampla e rápida de poderes, ampliação de verbas e, ao mesmo tempo, ameaça de redução ou retirada de toda assistência americana. O atual governo iraquiano não é coerente o bastante para cumprir esse papel. Não age com nada que se assemelhe à unidade, e a posição de Maliki não é forte o bastante para que ele imponha sua vontade ao grupo disparatado de políticos antagônicos a que preside.
Bush favorece uma ampliação dramática no número de soldados americanos, para impor alguma ordem a Bagdá e no noroeste do Iraque, elevando em 21 mil soldados o contingente de 132 mil. A abordagem de Bush colocaria 32 mil soldados americanos em Bagdá, cidade de seis milhões de habitantes, o que daria aos comandantes americanos um soldado por 184 moradores, total muito inferior à proporção de um soldado por 20 moradores recomendada nos novos manuais de combate a insurgências do Exército. Inundar de soldados uma área do Iraque e partes de Bagdá redundaria em negligenciar os aspectos mais sutis da doutrina de combate a insurgências. Para sustentar a elevação do contingente de Bagdá, teria de haver um segundo estágio no processo. Depois que os insurgentes forem removidos de suas áreas, o governo teria de reconstituir sua capacidade de administração e de segurança, e estabelecer o domínio da lei.
Existe o perigo importante de que nem a proposta de Bush nem a do Grupo de Estudos sobre o Iraque reconheçam as raízes da violência que varre o Iraque. As origens da guerra civil estão no total colapso da capacidade de administração e coerção do Estado. O Estado iraquiano -seus ministérios, funcionários públicos, forças policiais e Exército- deixou de existir de forma efetiva, depois que o regime mudou. A incapacidade dos Estados Unidos para reconstruir essas instituições é o ponto focal do problema. Até que a capacidade do Estado seja reconstruída de maneira significativa, o Iraque continuará a ser um centro de instabilidade violenta, e a população continuará nas garras de um pesadelo hobbesiano. Suas vidas serão desagradáveis, brutais e curtas.
TOBY DODGE é professor de política internacional da Universidade de Londres e consultor sênior do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, em Londres. É autor de "Iraq's Future" [o futuro do Iraque] e "Inventing Iraq" [inventando o Iraque], ambos de 2005. Este texto é uma versão editada de seu depoimento à Comissão de Relações Exteriores do Senado dos EUA, em 25 de janeiro de 2007.
Tradução de PAULO MIGLIACCI


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