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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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ARTIGO

Por uma política externa européia comun


A guerra conscientizou os europeus do fracasso de sua política externa comum


A União Européia já se apresenta hoje como uma forma de "governar além do Estado nacional"

JACQUES DERRIDA
JÜRGEN HABERMAS


Duas datas nós não deveríamos esquecer: o dia em que os jornais comunicaram a seus leitores atônitos a declaração de lealdade a Bush, para a qual o primeiro-ministro espanhol havia convidado os governos europeus dispostos à guerra, o que foi feito às costas dos outros colegas da União Européia. Mas também o 15 de fevereiro de 2003, quando os protestos em massa, nas cidades de Londres e Roma, de Madri e Barcelona, de Berlim e Paris, reagiram a esse golpe súbito. A simultaneidade desses protestos magníficos, os maiores desde o final da Segunda Guerra Mundial, talvez venha a entrar nos livros de história como o sinal do nascimento de uma esfera pública européia.
Durante os meses cinzentos antes da eclosão da guerra contra o Iraque, uma divisão de trabalho moralmente obscena havia excitado os sentimentos. A grande operação logística da marcha militar inexorável e a atividade frenética das organizações de ajuda humanitária se engrenaram uma na outra de maneira precisa, como rodas dentadas. A execução do espetáculo permaneceu impassível mesmo perante os olhos da população que, desprovida de qualquer iniciativa própria, seria a vítima. Sem dúvida, o poder dos sentimentos pôs de pé os cidadãos da Europa. Mas, ao mesmo tempo, a guerra conscientizou os europeus do fracasso, há muito preparado, de sua política externa comum. Como em todo o mundo, a ruptura galhofeira do direito das gentes incendiou na Europa uma polêmica acerca do futuro da ordem internacional. Mas os argumentos divergentes nos atingiram mais profundamente.
Com essa polêmica, as conhecidas linhas de ruptura se destacaram com uma intensidade tanto maior. As tomadas de posição controversas sobre o papel da superpotência, sobre a ordem mundial futura, sobre a relevância do direito internacional e da ONU, fizeram irromper abertamente as oposições latentes. O abismo que já separava, de um lado, os países continentais e os anglo-saxões, e, de outro, a "velha Europa" e os candidatos do Leste Europeu ao ingresso na UE ficou um pouco mais profunda. No Reino Unido, as "relações especiais" com os EUA não são de modo algum incontestes, mas, tanto hoje como ontem, encontram-se bem acima na ordem de preferências de Downing Street. E os países do Leste Europeu, se correm em direção à União Européia, não estão dispostos, porém, a restringir de novo sua autonomia, só há pouco conquistada. A crise do Iraque foi apenas o catalisador. Mesmo no conclave de Bruxelas para o estabelecimento de uma Constituição, torna-se patente a oposição entre as nações que querem realmente um aprofundamento da União Européia e as que têm um interesse compreensível em congelar o modo existente de administração intergovernamental ou, no melhor dos casos, em alterá-lo de maneira cosmética. Agora a oposição já não pode mais ser disfarçada.
A Constituição futura nos brindará com um ministro europeu de Relações Exteriores. Mas de que vale um novo cargo, se os governos não chegam a um acordo a respeito de uma política comum? Mesmo um Fischer, com a designação do novo cargo, seria impotente como Solana. Por ora apenas os Estados-membros da Europa Central estão preparados para conferir à União Européia certas qualidades estatais. O que fazer, se somente esses países podem concordar entre si sobre uma definição dos "próprios interesses"? Se a Europa não deve se decompor, esses países precisam agora fazer uso do mecanismo, decidido em Nice, da "cooperação reforçada", a fim de dar início, numa "Europa com distintas velocidades", a uma política comum de relações exteriores, de segurança e de defesa. Resultará disso um efeito de sucção, à qual os outros membros primeiramente na zona do euro não poderão escapar por muito tempo. No quadro da Constituição européia futura, não é permitido e não pode haver nenhum separatismo. Ir à frente não significa excluir. A Europa Central vanguardista não pode se consolidar em uma pequena Europa; ela tem de ser, como foi tantas vezes, a locomotiva. Em íntima cooperação, os países-membros da União Européia manterão as portas abertas, a começar por causa de seus próprios interesses. Por essas portas entrarão os convidados tanto mais cedo quanto mais rapidamente a Europa Central se tornar ativa também na parte externa e demonstrar que, em uma sociedade mundial complexa, não só as divisões contam, mas também o poder brando de agendas de negociação, relações e vantagens econômicas.
Nesse mundo, um endurecimento da política não pagaria o preço de uma alternativa tão estúpida e custosa como seria a alternativa entre a guerra e a paz. No plano internacional e no quadro da ONU, a Europa precisa pôr o seu peso na balança, para contrabalançar o unilateralismo hegemônico dos EUA. Nos cumes da economia mundial e nas instituições da Organização do Comércio Mundial, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, ela deveria fazer valer sua influência na configuração de uma futura política interna mundial.
Todavia a política de uma estruturação mais ampla da União Européia esbarra hoje nos limites dos meios do controle administrativo. Até agora foram os imperativos funcionais de criar uma área econômica e monetária comum que impulsionaram as reformas. Essas forças motoras estão esgotadas. Um política configuradora, que requer dos Estados-membros não apenas a eliminação dos obstáculos à concorrência, mas também uma vontade comum, depende dos motivos e das convicções dos próprios cidadãos. As decisões da maioria a respeito das direções da política externa, repletas de conseqüências, só poderão contar com a aceitação se as minorias derrotadas forem solidárias. Mas isso pressupõe um sentimento de pertença política. As populações precisam de certo modo construir "novos andares" para suas identidades nacionais, de modo a ampliá-las com uma dimensão européia. Já consideravelmente abstrata mesmo hoje em dia, a solidariedade civil que se limita aos pertencentes da própria nação precisa se estender no futuro aos cidadãos europeus de outras nações.
Isso coloca em jogo a questão sobre a "identidade européia". Somente a consciência de um destino político comum e a perspectiva convincente de um futuro comum podem impedir as minorias vencidas de obstruir a vontade da maioria. É fundamental que os cidadãos de uma nação considerem a cidadã de uma outra nação como "uma de nós". Esse desiderato leva à questão que tantos céticos levantam: há experiências históricas, tradições e conquistas que fundamentem para os cidadãos europeus a consciência de um destino político vivenciado em comum e a ser configurado em comum? Uma "visão" atraente e mesmo contagiante para uma Europa futura não cai do céu. Hoje ela só pode nascer do sentimento inquietante de perplexidade. Mas ela pode proceder dos apuros de uma situação em que nós, europeus, somos como que relançados a nós mesmos. E ela precisa se articular na cacofonia febril de uma esfera pública de múltiplas vozes. Se o tema até agora nem sequer foi colocado "na agenda", fomos nós intelectuais que falhamos.
Com o que não é obrigatório, pode-se concordar facilmente. Nós todos temos em mente a imagem de uma Europa pacífica, cooperativa, aberta a outras culturas e capaz de diálogo. Nós saudamos a Europa que, na segunda metade do século 20, encontrou soluções exemplares para dois problemas. A União Européia já se apresenta hoje como uma forma de "governar além do Estado nacional", a qual poderia fazer escola na constelação pós-nacional. Também os regimes europeus de bem-estar social foram exemplares por muito tempo. No plano do Estado nacional, eles passaram hoje para a defensiva. Mas uma política futura de domesticação do capitalismo em espaços delimitados não pode retroceder para aquém dos critérios de justiça social que eles positivaram. Por que a Europa, se ela deu conta de dois problemas dessa ordem de grandeza, não deveria colocar para si também o outro desafio de impulsionar uma ordem cosmopolita com base no direito internacional e de defendê-la contra projetos concorrentes?
Um discurso urdido na Europa toda teria certamente de deparar com as disposições existentes, que de certa maneira aguardam um processo estimulante de auto-entendimento. Dois fatos parecem contradizer essa suposição ousada. As conquistas históricas mais significativas da Europa não perderam sua força de formar identidade justamente por conta do seu êxito mundial? E o que irá manter coesa uma região que se caracteriza como nenhuma outra pela rivalidade permanente entre nações autoconfiantes?
Visto que o cristianismo e o capitalismo, a ciência natural e a técnica, o direito romano e o Código Napoleônico, a forma de vida urbana e civil, a democracia e os direitos humanos, a secularização do Estado e da sociedade se espalharam por outros continentes, essas conquistas já não são mais um privilégio da Europa. Enraizada na tradição judaico-cristã, a mentalidade ocidental possui certamente traços característicos. Mas mesmo essa característica espiritual, que se distingue pelo individualismo, pelo racionalismo e pelo ativismo, é partilhada com os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália. O "Ocidente", na qualidade de um perfil espiritual, abrange mais do que somente a Europa.
Além disso, a Europa consiste em Estados nacionais que se delimitam reciprocamente de maneira polêmica. Marcada nas línguas nacionais, nas literaturas nacionais e nas histórias nacionais, a consciência nacional teve por muito tempo um efeito explosivo. No entanto, em reação à força destrutiva desse nacionalismo, constituíram-se também formas de pensar e agir que, da perspectiva dos não-europeus, dão um rosto à Europa atual em sua multiplicidade cultural incomparável e saliente. Uma cultura que por séculos foi dilacerada pelos conflitos entre cidade e campo, entre forças eclesiásticas e seculares, pela concorrência entre fé e saber, pela luta entre poderes políticos e entre classes antagônicas, mais do que todas as outras culturas, precisou aprender com a dor como as diferenças podem ser comunicadas, as oposições, institucionalizadas, e as tensões, estabilizadas. Também o reconhecimento das diferenças, o reconhecimento recíproco do outro em sua alteridade, pode tornar-se o sinal distintivo de uma identidade comum.


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