São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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CONTROVÉRSIA

Ministério da Saúde canadense já encomendou a primeira leva da erva a uma empresa de biotecnologia

Canadá legaliza uso medicinal da maconha

MARGARETE MAGALHÃES
DA REDAÇÃO

A maconha será usada legalmente para fins medicinais no Canadá até o final deste mês, com o apoio e a regulamentação do Ministério da Saúde. Um dos objetivos do órgão é reunir dados científicos para provar que a planta ajuda no tratamento de pacientes com doenças como esclerose múltipla, glaucoma, epilepsia, alguns tipos de câncer e Aids. Dentre alguns efeitos conhecidos, a Cannabis sativa -nome científico da planta- evita enjôos e alivia os efeitos colaterais da quimioterapia.
As novas regras, resultado de uma decisão da Justiça favorável ao uso medicinal da maconha em 31 de julho de 2000, ajudaram a criar comitês no Parlamento. E o assunto polêmico deve ser ampliado para o debate da descriminalização da droga no Canadá.
"A questão [do uso da maconha para fins medicinais" trouxe o debate da descriminalização e da legalização a público. Parece ser um processo", disse à Folha Peter Mackay, membro do Partido Conservador (oposição), contrário às novas regras.
De fato, a mudança só foi possível após a Corte de Apelações de Ontário ter aprovado o uso legal da erva no caso do Estado contra Terrence Parker, que fumava para reduzir crises epilépticas.
Segundo a Associação Médica Canadense, dos 1,9 milhão de usuários, 400 mil fumam cânabis para combater efeitos de doenças. A população total do país é de 30 milhões de habitantes. Desde 1999, para fugir da ilegalidade, 264 pessoas batalharam na Justiça para poder usá-la sem violar a lei.
O Ministério da Saúde do Canadá quer deixar o "processo mais simples e transparente", disse a porta-voz Roslyn Tremblay. A partir de agora, está liberado o cultivo para doentes terminais. Os pacientes com uma prescrição médica podem receber uma identificação do governo para receber o tratamento em clínicas, explicou Tremblay. "Mas tudo está por acontecer. Nem tudo está claro."
O fornecedor da erva já foi definido. Em dezembro do ano passado o ministro da Saúde, Allan Rock, fechou o contrato de US$ 5,75 milhões com uma empresa de biotecnologia, a Prairie Plant System, por cinco anos (leia entrevista ao lado), e a primeira encomenda chega no final do ano.
Tremblay diz que o Ministério da Saúde poderá "avaliar os riscos e os benefícios e gerar dados médicos e científicos capazes de determinar o impacto ou a eficácia" da droga. Essa é uma das principais críticas dos opositores à liberalização da maconha para uso medicinal, já que o produto ainda não é considerado terapêutico.
"Tenho preocupações com as implicações médicas", disse Mackay. Para o parlamentar, o uso contínuo expõe as pessoas às mesmas substâncias cancerígenas presentes no tabaco.
Nos EUA, há dois meses, a Suprema Corte proibiu, por 8 votos a 0, a distribuição da maconha feita por cooperativas para os doentes. A justificativa do tribunal foi a falta de comprovação científica de benefícios à saúde.
A intenção de passar do uso medicinal para etapas como a descriminalização e a legalização deve enfrentar obstáculos nos altos círculos no Canadá e protestos do governo norte-americano.
Dos parlamentares do Partido Conservador, 70% se opõem à descriminalização. "O uso da maconha pode levar as pessoas a consumir drogas como cocaína e heroína", diz Mackay.
O atual premiê, Jean Chrétien, do Partido Liberal, também não se mostra disposto a avançar a discussão para além do uso terapêutico. Em maio, disse que a descriminalização "não fazia parte da agenda".
Apesar da resistência em setores do governo, o público vê a questão com outros olhos. O produto até ganhou uma vitrine chique na The Friendly Stranger, uma loja de Toronto, de 260 m 2, que expõe camisetas, acessórios e óleos fabricados a partir de canabinóides.
E, segundo uma nova pesquisa nacional, coordenada pelo sociólogo Reginald Bibby, da Universidade de Lethbridge, 47% dos canadenses aprovam a legalização da droga, contra 30% nos começo dos anos 80 e 90.

Pressão americana
Apesar do crescimento de um consenso em direção à descriminalização, há forte pressão dos EUA para que ela não ocorra. Para comprovar a irritação norte-americana, o professor do departamento de psicologia da Universidade Simon Fraser, em Vancouver, e membro da Fundação Canadense de Política de Drogas, Barry Beyerstein, cita que os EUA anunciaram a abertura de um escritório da agência americana de combate às drogas em Vancouver (costa oeste do Canadá).
"Nossa economia é dominada pelos EUA, duvido que eles [governo canadense" tomem alguma iniciativa que contrarie George W. Bush", afirmou Beyerstein.
De fato, o governo dos EUA classifica como um "desastre" uma eventual decisão canadense autorizando a legalização da maconha. "Estamos acompanhando a discussão de perto", disse recentemente um representante do governo ao jornal "The Wall Street Journal".
A polícia federal do Canadá, a RCMP (sigla em inglês para Polícia Real Montada do Canadá), estima que o país produza anualmente 800 toneladas da planta, a maioria exportada para os EUA.
"Os EUA recebem muita maconha pela fronteira com a Colúmbia Britânica, maior produtora no país", disse Paddy Torsney, presidente do novo comitê especial sobre o uso de drogas ilegais, que a partir de setembro estudará métodos para lidar com viciados em cocaína, heroína e ecstasy.
Para Torsney, a percepção dos americanos e canadenses com relação ao combate às drogas é "muito diferente". Enquanto os americanos usam um modelo de combate por meio da repressão policial, no Canadá o método é utilizar a área da saúde para prevenir o vício.
"Se compararmos os dois sistemas, nós queremos cortar a demanda, e os EUA, a oferta."


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