São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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Necessidade de obter voto em Hong Kong leva dirigentes a evento católico; perseguição a religiosos continua, diz igreja "underground"

Eleição faz Pequim "abrandar" ateísmo

CLÁUDIA TREVISAN
DE PEQUIM

Interesses políticos podem fazer milagres. O proverbial ateísmo chinês teve de dobrar-se à fé religiosa anteontem, em Hong Kong, numa tentativa de buscar votos para os candidatos governistas na eleição legislativa local.
Em gesto raríssimo, dirigentes chineses baixaram a cabeça em sinal de respeito durante uma oração católica em Hong Kong, na abertura de uma não menos rara exposição sobre a Bíblia.
Para analistas, foi a maneira encontrada por Pequim para melhorar sua imagem e evitar um vexame nas urnas no mês que vem, ainda que para isso tenha sido necessário um exercício de genuflexão doutrinária. "Crentes e ateus não deveriam ter uma relação de mútua exclusão", disse o bispo K.H. Ting, presidente honorário do Conselho Cristão Chinês. "Os ateus são nossos amigos, não nossos inimigos."
Talvez seja verdade, mas o fato é que todas as atividades relacionadas à fé no país estão sujeitas ao controle estrito do governo -com exceção de Hong Kong, onde Pequim comprometeu-se a permitir a liberdade religiosa irrestrita ao recuperar o território do Reino Unido, em 1997.
No resto do país, prevalecem as limitações históricas, inclusive em relação à Igreja Católica, porque o governo teme que ela desempenhe na China o mesmo papel que teve no fim dos anos 80 no colapso do comunismo na Europa.

Católicos "underground"
Na superfície, a China respeita a liberdade religiosa. No subterrâneo, porém, o movimento católico clandestino e a repressão a ele indicam que essa liberdade pode ser só retórica.
"A recente inclusão de novos itens na Constituição para proteger os direitos humanos mostra que o país está determinado a melhorar a política de liberdade religiosa", discursou anteontem o bispo Ding Guangxun, classificado pelo "China Daily" de "líder da comunidade cristã chinesa".
Há uns mais "livres" que outros. No caso do catolicismo, o Partido Comunista rejeita a autoridade do papa de nomear bispos e permite o funcionamento apenas da chamada Igreja Católica Patriótica. Já a igreja que reconhece a autoridade do papa é ilegal e tem o nome de "underground" (subterrânea), por manter uma estrutura clandestina de seminários, padres, bispos e locais de reunião.
Oficialmente, o governo os ignora. "Não sei de que igrejas underground você está falando", disse Ye Xiaowen, chefe do Departamento de Assuntos Religiosos da China, à Associated Press.
Mas elas existem -calcula-se que haja entre 8 milhões e 12 milhões de católicos "underground". Já a Igreja Patriótica estima ter de 4 milhões a 5 milhões de fiéis na China, país de 1,3 bilhão de habitantes.

Religião "imperialista"
"Ao longo da história, a igreja foi instrumento de países imperialistas para invadir a China. Por isso, os chineses não tinham boa imagem do catolicismo e do protestantismo", disse à Folha Liu Bai Nian, da Associação da Igreja Católica Patriótica da China.
Segundo Liu Bai, antes da Revolução Comunista de 1949, bispos estrangeiros ocupavam 108 das 137 dioceses do país. Em 1957, diz, todos haviam deixado a China, e o Vaticano não aceitou os nomes para os postos apresentados pela igreja local, com a chancela do governo, o que aprofundou a cisão.
O Vaticano havia apoiado os nacionalistas liderados por Chiang Kai-shek. Com a derrota desse movimento para os comunistas de Mao Tse-tung, em 1949, o papado reconheceu Taiwan, para onde fugiram os nacionalistas. Até hoje, China e Vaticano não mantêm relações diplomáticas.
"Na década de 50, os países ocidentais queriam usar a Igreja Católica para se contrapor ao novo poder político da China", diz Liu Bai. Os católicos aliados ao governo decidiram nomear os bispos para as dioceses vagas em 1957, o que formou a Igreja Patriótica.
Bispos e padres chineses que se recusaram a aderir à igreja oficial foram presos ou tiveram de abandonar o país. O caso mais emblemático é o do cardeal Ignatius Kung, que era bispo de Xangai e ficou 30 anos preso por se manter fiel ao Vaticano e não reconhecer a Igreja Patriótica.
Joseph Kung, sobrinho do cardeal -que morreu nos EUA-, criou uma fundação cujo objetivo é defender a liberdade religiosa na China e assegurar a sobrevivência da Igreja Underground, denunciando a prisão de religiosos.
O mais recente levantamento da fundação indica que há quatro bispos e 21 padres presos ou em campos de trabalho forçado na China. Seis bispos se encontram em prisão domiciliar ou sob vigilância da polícia, e o paradeiro de quatro padres é desconhecido.
A criação de igrejas "patrióticas" foi uma tentativa de rejeitar a influência estrangeira (do Vaticano) e formar religiões "com características chinesas".
O respeito ao regime socialista chinês faz parte dos compromissos que os religiosos das igrejas oficiais têm de assumir. Segundo Liu Bai, da associação patriótica, os bispos juram fidelidade à Igreja Católica e assumem o compromisso de apoiar o sistema político da China -"a César o que é de César, a Deus o que é de Deus."


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