São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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QUEDA DO MURO: 20 ANOS DEPOIS

Transição à democracia tem muitos donos

Há explicações múltiplas para o movimento que em apenas oito meses levou à derrocada do comunismo na Europa

Fim de regimes de partido único em 1989 obedeceu a dinâmicas diferentes em cada um dos países que seguiam Pacto de Varsóvia

CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO

Rabiscado às pressas no final de novembro de 1989, quando a liderança do PC da antiga Tchecoslováquia já havia renunciado, o "programa de princípios" do Fórum Cívico, criado pouco antes para articular os manifestantes que pediam o fim da ditadura de partido único, tinha sete pontos:
1) Estado de Direito;
2) Eleições livres;
3) Justiça social;
4) Ambiente limpo;
5) Um povo educado;
6) Prosperidade;
7) Volta à Europa.
A plataforma "pragmática, idealista e ao mesmo tempo incrivelmente ambiciosa", como define o historiador britânico Tony Judt em seu livro "Pós-Guerra", refletia a falta de cálculo de longo prazo da gente comum que participou ou assistiu, de maio a dezembro daquele ano, à implosão da ordem mundial que pouco antes parecia congelada.
Durante a détente entre EUA e URSS -entre 1968, quando a invasão da Tchecoslováquia abortou o último projeto de socialismo democrático no Leste Europeu, e o início dos anos 80- seria difícil antever o dominó que chegaria à própria URSS em 1991, expandindo as fronteiras do capitalismo.
Assim como ainda debatem quem iniciou a Guerra Fria, historiadores e dirigentes políticos divergem sobre a ordem dos fatores que precipitaram a queda do comunismo no Leste Europeu. Alguns, porém, estão na maioria das listas.

1) A ascensão de Mikhail Gorbatchev, com proposta de reestruturação econômica (perestroika) e distensão política (glasnost) do sistema soviético e renúncia pública à doutrina Brejnev, que vetava aos outros seis países que compunham o Pacto de Varsóvia o afastamento do marxismo-leninismo.
Judt chama 1989 de "a revolução de Gorbatchev". O próprio ex-líder afirma que sua posição de não intervenção foi "crucial". Os mais céticos dizem que, afogado no Afeganistão, o Exército soviético não teria condições de repetir 1968 e 1956 (quando sufocou revolta democrática húngara).

2) As dificuldades econômicas no Leste Europeu, cuja dívida com o Ocidente foi de US$ 6,1 bilhões a 95,6 bilhões entre 1971 e 1988. Com exceção da Romênia, que pagou seu débito impondo arrocho interno, o custo de financiar um "contrato social" em que benefícios generosos visavam compensar a falta de liberdade não era acompanhado pelo aumento da produtividade.
Para os "estruturalistas", essa foi a causa básica da queda do comunismo na Europa. Mas Angelo Segrillo, especialista em história soviética da USP, avalia que, com exceção da Polônia, o problema da dívida não chegou à gravidade que teve na América Latina.

3) O exemplo da Polônia, onde greves a partir de 1970 culminaram na formação do Solidariedade, primeiro sindicato independente sob o comunismo. A situação excepcional da ultracatólica Polônia -a igreja teve atuação livre mesmo no período stalinista mais duro- foi ressaltada pela ascensão ao papado, em 1978, de Karol Wojtyla, com projeto de combate ao "materialismo ateu".

4) A "segunda Guerra Fria" do presidente americano Ronald Reagan (1981-1989), que aumentou o orçamento do Pentágono e subiu a retórica contra o "império do mal".
Apesar da pressão militar e do apoio a dissidentes no Leste, a versão de que esse foi o fator-chave para a queda do comunismo não tem apoio da maioria. A ocupação do Afeganistão teria sido, para os soviéticos, fonte maior de desgaste.

5) Os Acordos de Helsinque, de 1975, vistos pela URSS como a aceitação final do seu status no Leste Europeu. Os textos citavam direitos individuais depois usados por dissidentes para criar grupos independentes do PC, entre eles o Carta 77, do tcheco Vaclav Havel.

6) O papel da TV, principalmente para húngaros, tchecos e alemães, que assistiam ao que ocorria nos vizinhos.
Se houve causas comuns aos oito meses que encerraram o "breve século 20", a dinâmica foi diferente em cada país.
Só na Polônia havia oposição bem organizada à frente dos protestos. Diante de novas greves, o regime relegalizou o Solidariedade e negociou a realização de eleições semilivres.
Na Hungria, a transição partiu de reformistas do próprio PC. Em 1988, eles haviam afastado Janos Kadar, que assumira após a supressão da revolta de 1956, e permitido um partido independente. Em maio de 1989, abriram a fronteira para os alemães orientais, catalisando a pressão popular contra a direção do PC vizinho.
A transição foi igualmente negociada na República Tcheca, onde a Revolução de Veludo foi de manifestações estudantis à posse do ex-dissidente Havel na Presidência entre novembro e dezembro.
Na Bulgária, onde o regime tentara perpetuar-se com perseguição à minoria turca, a mudança deu-se por golpe palaciano, que afastou Todor Zhivkov da direção comunista.
Apenas na Romênia -onde o renitente stalinista Nicolai Ceausescu proclamava sua independência em relação à URSS- houve violência, com a repressão inicial aos protestos antirregime seguida pelo julgamento sumário e o fuzilamento, televisionados, do ditador, renegado pelo Exército.


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