São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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ORIENTE MÉDIO

Analistas vêem com ceticismo argumento dos EUA de que a queda de ditador traria regimes mais abertos à região

Democracia pós-Saddam é questionada

MARCELO STAROBINAS
DA REDAÇÃO

Um dos principais pilares da propaganda do governo de George W. Bush para convencer o mundo da necessidade de um ataque ao Iraque para derrubar Saddam Hussein é que a queda do ditador poderia marcar o início de uma era de paz, democracia e respeito aos direitos humanos e às liberdades civis no Oriente Médio.
A apresentação da troca de regime em Bagdá como uma panacéia para os problemas que há décadas abalam a região é recebida com ceticismo nos meios acadêmicos. Os especialistas argumentam que, em primeiro lugar, será uma difícil missão para Washington instaurar um governo democrático e estável no Iraque. E, mesmo se tiverem êxito, nada garante que o exemplo iraquiano seria copiado em países como Síria, Jordânia, Egito ou Arábia Saudita.
"Seria muito bom que o Oriente Médio se tornasse mais democrático após Saddam, mas isso não acontecerá", disse à Folha Mark Tessler, professor da Universidade de Michigan que estuda a opinião pública no mundo árabe. "A razão de os outros países não serem democráticos não é não possuírem um exemplo a seguir. Mas sim porque seus líderes não querem compartilhar o poder."
Além da resistência a mudanças, os analistas colocam em dúvida a sinceridade dos EUA quando dizem buscar a democratização e o respeito aos direitos humanos na região. "Isso teria, afinal, um efeito muito desestabilizador em aliados dos EUA, como Arábia Saudita e Egito. Eles dizem querer acabar com a ditadura no Iraque, mas estão dispostos a fazer o mesmo no Cairo e em Riad?", indaga William Hale, professor de política do Oriente Médio da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.
Tessler complementa: "Os EUA dizem querer apoiar governos democráticos e fazem algumas coisas para ajudar -como o financiamento de algumas ONGs que trabalham com a sociedade civil. Mas isso é uma pequena parte de seu programa". "A maioria das coisas que fazem é trabalhar com quem está no poder, sem pressioná-los de forma séria para que se tornem democráticos."
Desde o fim da Guerra Fria, quando os EUA tomaram dos soviéticos a condição de principal parceiro militar de Estados árabes estratégicos, Washington observa o cenário doméstico nos países do Oriente Médio sob as lentes do realismo político.
O exemplo da Revolução Iraniana de 1979 -na qual militantes conseguiram derrubar um regime aliado dos EUA e criar uma teocracia islâmica antiamericana- ajudou a moldar a diplomacia da Casa Branca nas décadas seguintes. Todo movimento político islâmico passou a ser visto como extremista e antiocidental. Impedi-los de chegar ao poder passou a ser questão prioritária de interesse nacional.
Assim, enquanto no campo da retórica os governantes americanos defendem a exportação da democracia e dos direitos humanos, na prática seus representantes no exterior são instruídos a apoiar líderes autoritários como o egípcio Hosni Mubarak ou os monarcas saudita e jordaniano.
Tessler lembra que as promessas de Bush de uma nova era no Oriente Médio pós-Saddam não são exatamente novas. Seu pai já prometia algo parecido, há mais de dez anos, ao término da Guerra do Golfo (1991). "Bush pai propôs uma nova ordem mundial, com desenvolvimento, democracia, distribuição de renda, combate à corrupção e mudanças das lideranças. Mas nada mudou. Aquela nova ordem não levou a lugar nenhum", observa, sugerindo que a história possa se repetir.
Num artigo intitulado "Miragem democrática no Oriente Médio", Marina Ottaway, Thomas Carothers, Amy Hawthorne e Daniel Brumberg, do think-tank americano Carnegie Endowment for International Peace, dizem que "a idéia de que, ao derrubar Saddam, os EUA podem democratizar rapidamente o Iraque e lançar uma gigantesca onda democrática no Oriente Médio é uma fantasia perigosa". Segundo eles, mesmo se levassem adiante uma agenda agressiva de reformas, "o resultado final em cada país será resultante mais de fatores domésticos que do vigor reformista americano e europeu".
Os analistas afirmam também que os novos desafios para a política externa americana após os atentados de 11 de setembro podem dificultar ainda mais qualquer projeto de liberalização política no mundo árabe.
Washington, afinal, precisa da cooperação dos serviços de inteligência e de segurança de seus aliados regionais para combater grupos islâmicos com grande base de apoio no Oriente Médio -como é o caso da Al Qaeda. "Os EUA precisam desses regimes na guerra ao terror", diz Tessler. "O país seguirá trabalhando com os serviços de inteligência do Egito e da Arábia Saudita, mesmo que não sejam regimes democráticos."

EUA x Arábia Saudita
Esse mesmo argumento também serve como resposta às proposições de que, de "posse" das reservas de petróleo iraquianas no pós-guerra, os americanos deixariam de depender dos sauditas e permitiriam um esfriamento das relações entre os dois países.
O diálogo entre Washington e Riad tem sido turbulento desde os ataques aos EUA, em razão das suspeitas e acusações de que integrantes do alto escalão da monarquia saudita seriam patrocinadores de grupos como a Al Qaeda.
Seria, contudo, um passo arriscado para Bush romper com um país que, além de ser o maior produtor mundial de petróleo, é o berço do islã e local de origem de 15 dos 19 sequestradores dos aviões que derrubaram as torres do World Trade Center.
Embora busque enquadrar os seus planos de deposição de Saddam Hussein dentro da moldura moral da defesa da democracia, dos direitos humanos e das liberdades individuais, o governo dos EUA -na visão dos estudiosos- continuará a sustentar outros regimes autoritários e repressivos depois de um eventual conflito.


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