São Paulo, sábado, 09 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A MORTE DO PAPA

Presidente de Israel, Moshe Katsav, cumprimenta ditador sírio, Bashar Assad, e presidente iraniano, Mohammad Khatami, no funeral

Papa faz milagre de aproximar rivais

DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA

Os gritos de "santo, santo, santo" certamente teriam sido mais fortes se os fiéis tivessem visto o que os mais fanáticos tomariam por milagre: o aperto de mão entre o presidente de Israel, Moshe Katsav, e o da Síria, Bashar Assad. Os países estão tecnicamente ainda em guerra. Damasco disse que o ato foi "mera formalidade, sem nenhum significado político".
Um segundo "milagre" se deveu à forma escolhida pelo Vaticano para dispor as autoridades, à do caixão do papa. Foi seguida a lista alfabética (em francês), com o que o judeu Katsav (Israel) ficou quase ao lado do muçulmano Mohammad Khatami (Irã), presidente de um país que adota a legislação islâmica e não aceita a existência do Estado judeu. Cumprimentaram-se também.


São 14h20, e a lápide fecha o túmulo. Diz, em latim: "João Paulo 2º, pio pontífice - 1921-2005"


Discreto, Hagit Cohen, porta-voz de Katsav, disse depois que era cedo demais para saber se o aperto de mão traria frutos para uma relação rompida desde 1979, quando da revolução dos aiatolás.
Mas acrescentou: "Não há dúvida de que é um precedente. Foi um momento histórico". Chegou, portanto, o mais perto de "milagre" a que se permitiria uma autoridade -ainda mais não-católica em um evento católico.
A primeira onda de gritos de "santo, santo, santo" cessa quando o coro da capela Sistina entoa o credo e as vozes dos cantores cobrem o alarido da praça, cheia de 20 mil pessoas, mera fração das 600 mil que as autoridades calculam terem participado da celebração, incluídas as ruas e praças próximas e não tão próximas.
A praça em si ficou com espaços vazios porque a segurança impôs filtros mais rígidos, dado que havia cerca de 200 altas autoridades do planeta na celebração. A segunda onda de "santificação" popular chega quase uma hora após o fim da homilia, quando os 140 cardeais presentes iam se colocando em volta do caixão simples de pinho envernizado do papa.
É uma onda bem mais forte que se torna incontrolável quando os 12 "sediari" (funcionários do protocolo vaticano) erguem aos ombros o caixão para levá-lo para o túmulo na cripta da basílica.
A lenta procissão vira o catafalco para a massa, que explode em aplausos. Duram oito, dez, quinze minutos, sempre acompanhados de "santo, santo, santo", o grito que mal permite ouvir que os sinos de bronze da imensa catedral estão tocando o som fúnebre da homenagem aos mortos.
Em toda parte, escorrem lágrimas de olhos fixos no caixão que vai cruzando a porta principal da basílica, adornada por um cortinado vermelho e por um pano com a imagem da ascensão de Cristo aos céus.
Os escoteiros tiram do pescoço os lenços tradicionais e os agitam ao vento frio. Os cânticos reforçam a comparação: ao ritmo sincopado das palmas, os jovens gritam "Giovanni Paolo, Giovanni Paolo", abafando até o rotor do helicóptero da segurança que não parou de sobrevoar a praça desde que o sol nasceu, antes das 7h.
Já havia muita gente na praça, mas muito mais nas ruas circundantes. Mas pouca gente viu quando, por trás do Vaticano, passou a interminável limusine que levava o presidente George Walker Bush e sua mulher, Laura.
As autoridades começaram a chegar perto das 9h, uma hora antes do horário da missa, recebidas por Leonardo Sandri, o ítalo-argentino que foi um dos quatro cardeais cuja função (na Secretaria de Estado) não cessou com a morte de João Paulo 2º.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a mulher, Mariza, chegam justamente quando a praça canta "Giovanni Paolo, Giovanni Paolo", 18 minutos antes de o sino da basílica começar a tocar para anunciar o início da cerimônia.
O corpo do papa já havia sido colocado no caixão de pinho. O veludo vermelho da porta da basílica se abre para deixar passar uma cruz nas mãos de um padre, abrindo a procissão. Monsenhor Piero Marini, mestre de cerimônias pontifício, vem à frente do caixão, enfeitado só por uma cruz pirogravada, de braço esquerdo mais comprido que o direito.
Os "sediari" depositam o caixão, com alguma dificuldade, no tapete junto ao altar na escadaria de São Pedro. Marini abre o Evangelho de capa vermelha depositado sobre o caixão, mas o vento não deixa que fique aberto na página escolhida por ele. Entram, então, os 140 cardeais, de estola vermelha, a cor do luto pontifício.
Aproximam-se do altar em pequenos grupos. O vento sopra mais forte e faz voar os mantos vermelhos, o véu negro que cobre a cabeça de Cherie, a mulher do premiê britânico, Tony Blair, e sacode as muitas bandeiras da Polônia, maioria esmagadora na praça, sempre acompanhadas de um pano preto em sinal de luto.
São 10h20, e Joseph Ratzinger, o cardeal-decano, diz em latim: "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". O coro responde amém. Chega a hora da primeira leitura, feita pela espanhola Alejandra Correa, a partir do livro do profeta Isaías. Marco Pavan canta o salmo 22, cujo eixo é: "O Senhor é meu pastor, nada me faltará".
A segunda leitura, da carta de São Paulo aos filipenses, cabe a um britânico, John McDonald.
Na área da missa, junto às escadarias da basílica, há um mar de vermelho à direita do altar (são os cardeais), um mar de negro à esquerda (os indefectíveis ternos escuros das autoridades, quebrados apenas pela túnica cerimonial branca do vice-presidente da Índia, Bhairon Singh Shekhawat, e por uma espécie de cachecol colorido aos ombros do presidente do Afeganistão, Hamid Karzai).
Já fora do cordão de segurança, há pouco negro, muito vermelho, mas há todas as outras cores, do verde-e-amarelo da bandeira do Brasil aos cabelos loiros de polonesas e poloneses em penca, das listas da bandeira norte-americana às mochilas de lona dos jovens.
Ratzinger começa a leitura do Evangelho segundo João. A mensagem central é Jesus perguntando três vezes a Pedro se O ama.
Na terceira vez, lê o cardeal, desta vez, em italiano, Pedro responde: "Sí, Tu sai tutto, Tu sai que Ti amo" (Você sabe tudo, sabe que O amo). Então, "pastoreie as minhas ovelhas", responde Cristo, que pede a Pedro: "Tu Seguimi".
O "siga-me" será o fio condutor da mensagem da homilia e "a chave para compreender a vida do amado papa João Paulo 2º", segundo Ratzinger. Ele diz ter "o coração cheio de tristeza" e de "alegre esperança e profunda gratidão", o que puxa a primeira interrupção para aplausos.
Ratzinger, em nome do Colégio dos Cardeais, agradece a todos, chefes de Estado e governo e demais autoridades, líderes eclesiásticos, sacerdotes, fiéis e, "de modo especial", aos jovens que "João Paulo 2º amava". Mais aplausos.
Depois, resume a história de vida de Karol Wojtyla do "terror nazista" (durante a ocupação da Polônia) à "arte do verdadeiro amor", durante seu pontificado. Marizka, 17, chora sem parar no meio da praça. Polonesa, está sob a grande faixa da cidade de Wadowice, trazida pelos jovens.
O cardeal diz que João Paulo 2º, com seu "amor à palavra", deu "nova atração ao anúncio do Evangelho". "É verdade", concorda na praça Francesco Pizzanelli, um "papa-boy" que conta que, nas mensagens de e-mail que o movimento juvenil está recebendo, as mais freqüentes são de jovens que dizem ter se convertido ao ouvir a pregação do papa.
A homilia está terminando. Ratzinger diz que João Paulo 2º "permanecerá inesquecível". Os fiéis estouram em aplausos. É a hora da oração dos fiéis. Em francês, uma jovem loira pede que Deus acolha João Paulo 2º "no Seu reino de luz e paz". Em suaíli, idioma africano, um negro pede pela igreja. Em filipino, um jovem pede paz entre as nações.
Segue-se a procissão do ofertório. Começa com um casal de poloneses, em trajes típicos, e termina com duas freiras nos hábitos convencionais. "Dominus vobiscum" (o Senhor esteja com vocês), volta Ratzinger ao latim.
"Mistero fides" (eis o mistério da fé), prossegue.
O cardeal anuncia o abraço da paz, que os cardeais trocam entre si, os presidentes entre eles, os fiéis entre lágrimas e bandeiras.
Em seguida, 28 sacerdotes descem as escadas da basílica, passam pela grade de segurança e vão até a via Della Conciliazione, a grande avenida que desemboca na praça São Pedro, para levar a comunhão à massa que se espalha pelas laterais, até o outro extremo, a praça Giovanni 23.
O centro da avenida ficou aberto, reservado pela segurança para a eventualidade de uma retirada de emergência.
O ex-presidente polonês e ex-operário Lech Walesa tem um motivo pessoal para agradecer ao papa: "Sem ele, eu ainda seria eletricista em Gdansk" (o estaleiro em que trabalhava até criar o movimento "Solidariedade", cuja bandeira, com o nome em polonês, está na primeira fila do público na praça).
Passa um pouco do meio-dia, e começam as orações finais. "Sancta Maria Mater Dei", diz o oficiante. "Ora pro eo", responde o coro. Na lateral da via Della Conciliazione, uma imensa faixa jura: "Nostro papa vive".
No altar, a faixa é desmentida. "Ó, Deus, que dá a justa recompensa aos operários do Evangelho, acolhe o Teu servo e nosso papa João Paulo", reza o cardeal Camillo Ruini, vigário de Roma.
Segue-se idêntica oração feita pelos 15 patriarcas das Igrejas Ortodoxas do Oriente, que não se unificaram, ao contrário da igreja do Ocidente, de um só primaz (o papa).
Ratzinger retoma a palavra para pedir a Deus que, "à igreja, privada de seu pastor, dê o conforto da fé e a força da esperança".
A missa termina, os aplausos continuam, os gritos de "santo, santo, santo" também. O caixão volta ao interior da basílica, as portas se fecham, para só reabrirem hoje a partir de 7h (2h em Brasília). Mas a cripta vaticana, onde o papa foi sepultado depois da cerimônia na praça, permanecerá fechada até segunda-feira pelo menos. Na basílica fechada, os dignitários da igreja -e só eles- levam o caixão de João Paulo 2º para a cripta em que será enterrado, a passos da tumba de são Pedro, tido como o primeiro papa.
O caixão desce à "terra nua", como o papa pediu, enquanto se canta o "salve, Rainha, mãe da misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve".
São 14h20, e a lápide fecha o túmulo. Diz, em latim: "João Paulo 2º, pio pontífice - 1921-2005".
Lá fora, a massa começa lentamente a se deslocar. É uma cacofonia impressionante de idiomas. Em português, uma jovenzinha comenta com os três companheiros, bandeira de Portugal na mão, que ouvira falar que o papa fora sepultado com os sapatos porque seriam grandes demais para deixá-los para o sucessor.
Leva ao pé da letra a metáfora do cardeal Walter Kasper, presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que quis apenas dizer que João Paulo 2º era uma personalidade tão impactante que será difícil escolher um sucessor do mesmo tamanho.
Metáforas assim ajudam a engrossar o coro de "santo, santo, santo" que os jovens, principalmente, continuam gritando, enquanto buscam os caminhos de volta para casa, animados como se estivessem chegando.
"Vamos ver quanto dura toda essa fé", estraga Valentino Occhetto, com a experiência de quem já viu três papas serem enterrados, sempre servindo café em um dos bares à sombra dos altos muros do Vaticano.
(CLÓVIS ROSSI)


Texto Anterior: Benção final da era João Paulo 2º
Próximo Texto: Vaticanas: Susto
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.